sábado, 23 de janeiro de 2016

AMAR FOI MINHA RUÍNA

(“Dos sete pecados capitais, o ciúme é o mais perigoso.”)





Um dos mais importantes e interessantes melodramas da história do cinema, também reconhecido como um clássico noir, é AMAR FOI MINHA RUÍNA (Leave Her to Heaven), de 1945. Com Gene Tierney, Cornel Wilde, Jeanne Crain e Vincent Price. Do diretor John M. Stahl.

Gene Tierney foi uma atriz de uma beleza em grau superlativo. No entanto, teve uma vida difícil e atribulada. Entre seus principais filmes estão Amar Foi Minha Ruína, Laura, de Otto Preminger, O Fio da Navalha, de Edmund Goulding e A Vingança de Frank James, de Fritz Lang.

Amar Foi Minha Ruína é daqueles filmes que prendem nossa atenção e depois ficam em nossa cabeça por um bom tempo. Ficamos com a impressão de ser um dos melhores que já vimos. O que é verdade. É um filme sobre a beleza de Gene Tierney, tão resplandecente que às vezes parecia uma boneca de porcelana, e o contraste com o ciúme doentio e amor possessivo de sua personagem. Dizem que o diabo sempre aparece numa versão sedutora. Ellen Berent, personagem de Tierney, prova a verdade da expressão popular.

Essa estória é contada através de uma belíssima fotografia em cores vencedora do Oscar, acompanhada pelas belas paisagens do Maine e Novo México. A atuação de Gene Tierney e a caprichada direção de arte também foram indicadas para o prêmio da Academia.

Richard “Dick” Harlan (Cornel Wilde, um tanto quanto canastrão) passou dois anos na prisão e é recebido pelo amigo advogado Glen Robie (Ray Collins), quando regressa a Deer Lake, Maine, onde possui um chalé chamado Back of the Moon, à beira de um lago em formato de lua crescente. Ao desembarcar da pequena lancha, no trapiche do povoado, as pessoas ao redor não conseguem disfarçar olhares de pena. Após Dick afastar-se em um bote na direção de sua morada, Glen relata a um amigo o que levou aquele homem a tal situação e a história entre Dick e Ellen (Gene Tierney) é contada em flashback. "Dos sete pecados capitais, o ciúme é o mais perigoso", assim inicia Glen sua narrativa. "Eles se conheceram por meu intermédio."

O primeiro contato aconteceu no trem, sem saberem que estavam indo para o mesmo destino. Ocorreu um jogo de sedução recíproco. Ele completamente fisgado por aquela beleza irresistível; ela, impressionada pela semelhança que aquele estranho tinha com seu falecido pai, com o qual era muito ligada.

Despediram-se e ela desceu no povoado de Jacinto. Ele se deu conta que também era o seu ponto final e desceu logo após. Glen Robie é um amigo em comum da família Berent e de Richard Harlan. Estava recepcionando, na estação ferroviária, a viúva Berent e as belas filhas Ruth (Jeanne Crain) e Ellen. Richard aproximou-se, surpreso por reencontrar Ellen, e Glen fez as apresentações. "Nós nos conhecemos no trem. Brevemente", comentou Ellen. "Muito brevemente", respondeu Dick. Mal sabia ele que estava escolhendo a irmã errada. Mas seria impossível ignorar a beleza e charme da garota que encontrara no trem.

Glen Robie explica para seu amigo que convidara Richard, escritor, para descansar no seu rancho no Novo México, já que esse estava trabalhando em mais um livro. As Berents, amigas da família, também convidadas, lá estavam porque iriam realizar uma pequena cerimônia. As cinzas do pai falecido seriam espalhadas no alto de uma montanha, num platô que era seu lugar favorito e onde ia muito com a filha Ellen.

Ellen era noiva de um promotor ambicioso, Russell Quinton (Vincent Price). Mas essa circunstância não foi suficiente, nesses dias de convivência naquele ambiente bucólico, para impedir que florescesse o romance entre ela e Dick e anunciassem seu casamento ainda no Rancho Jacinto.

Quando o casal se mudou para o chalé de Dick, no Maine, o amor possessivo de Ellen começou a manifestar-se agressivamente, provocado pela presença do irmão pré-adolescente de Dick, Danny (Darryl Hickman), vítima de paralisia, que morava com eles, bem como pela presença do caseiro e até de sua própria família quando apareceu para visitá-los. Qualquer um que pudesse se interpor entre ela e o marido.

Algumas cenas do filme entraram para a história do cinema. Como a do afogamento do irmão deficiente no lago, impressionante até hoje. E a cena da queda de Ellen na escada, homenageada por Gilberto Braga, um dos fãs do filme, na novela Vale Tudo, com Glória Pires protagonizando a sequência.

Reconhecemos no comportamento de Ellen aquela irracionalidade feminina que atormenta os maridos, que nós, homens, somos incapazes de compreender. Mas essa garota virava o fio. Sua capacidade de alopração ia muito além da expectativa de Dick e da nossa como plateia. E Gene Tierney arrasa como femme fatale, enlouquecendo a todos nós, seja por sua beleza e sedução diabólicas, seja pelas linhas que ultrapassa como anjo do inferno em momentos de puro terror, que nem a morte pode evitar.

Amar Foi Minha Ruína é um excelente filme. Desenvolve um estudo sobre uma mente perturbada, tomada pelo ciúme e amor doentios, destruindo todos a sua volta e criando uma das vilãs mais malévolas do cinema. Como testemunhou Dick sob interrogatório no tribunal, quando tudo parecia estar perdido: "Ellen era capaz de tudo".

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

MULHERES DIABÓLICAS

(“O maior problema deles é saber a cor do carro que vão comprar ou não deixar o primo roubar metade da herança da avó.”)



                                                      

Nestes tempos de polarização, direita versus esquerda, ricos versus pobres, neoliberais versus socialistas, um brilhante filme sobre a luta de classes merece ser lembrado.

MULHERES DIABÓLICAS (La Cérémonie), de 1995. Com Isabelle Huppert, Sandrine Bonnaire e Jacqueline Bisset. Do genial diretor francês Claude Chabrol. Releitura do romance A Judgement in Stone, de Ruth Rendell, uma das damas da literatura policial inglesa.

Admirador de Hitchcock, Chabrol, falecido em 2010, foi um dos expoentes da Nouvelle Vague. Com uma produção bastante prolífica, principalmente no gênero suspense, os filmes do diretor francês são sempre interessantes. Esse Mulheres Diabólicas é o preferido em minha casa e é considerado um dos melhores de Chabrol.

Destaque para as interpretações do quarteto central: Isabelle Huppert, com grande atuação, premiada com o César e em Veneza, Sandrine Bonnaire, prêmio em Veneza, Jacqueline Bisset e Jean-Pierre Cassel.

Temos dois blocos de personagens bem definidos: os ricos e os pobres. Os matizes que desenvolvem suas personalidades são um dos pontos altos do filme.

Os ricos são representados pela família de um bem-sucedido industrial, Georges Lelièvre (Jean-Pierre Cassel), que mora numa mansão no interior da França. Sua esposa, Catherine (Jacqueline Bisset, a beleza e charme da riqueza), possui uma galeria de arte na cidade. Dois adolescentes completam o núcleo familiar. Melinda (Virginie Ledoyen), mais velha, é filha de Georges, e Gilles (Valentin Merlet), o rapaz, é filho de Catherine. Os Lelièvre possuem cultura refinada mas ao mesmo tempo são simples e não arrogantes. Típica burguesia francesa sem afetações.

Os pobres, principais protagonistas do filme, são duas amigas, Sophie (Sandrine Bonnaire) e Jeanne (Isabelle Huppert). Sophie é contratada como empregada doméstica por Catherine. Não revela que sofre de dislexia, o que acaba lhe causando problemas, assiste TV numa espécie de torpor como um mecanismo de fuga da realidade e esconde um passado obscuro. Jeanne trabalha no correio da cidade e faz amizade com Sophie. Ao contrário desta, é extrovertida, impulsiva, bisbilhoteira e insolente. Também possui um passado traumático e suspeito.

Sophie foi bem recebida pelos patrões. São generosos e amáveis. Ela, por sua vez, é calada e monossilábica. Em nenhum momento retribui a simpatia que lhe dirigem. Como se sua condição social lhe impedisse de simpatizar com aqueles que lhe pagam e não passam por dificuldades. Para ela tudo parece ser difícil, não consegue ler a lista de compras (por ser analfabeta), evita o patrão ao telefone pelo mesmo motivo, e mais os problemas graves do seu passado.

Aproxima-se naturalmente de Jeanne, a funcionária do correio, a única companhia com quem consegue sorrir e demonstrar uma tímida alegria. Identificam-se pela posição social, por uma vida difícil, com traumas não resolvidos, ao contrário dos Lelièvre, que são tranquilos e para quem a vida parece bem mais fácil por conta de sua classe social privilegiada.

As diferenças entre o mundo de Sophie e de Jeanne e o mundo dos Lelièvre são sempre bem nítidas, frequentemente colocadas em contraste. Desde uma das primeiras cenas, onde Catherine mostra para Sophie o quarto simples, com uma pequena TV, onde ficará acomodada, e depois apresenta o luxo e espaço dos quartos da família, salas e biblioteca e sua moderna e enorme TV.

Catherine comporta-se como alguém que quer segurar a serviçal a qualquer custo, sempre minimizando suas limitações, até um momento em que não poderá mais desculpá-la. Logo após contratá-la, inclusive comenta no jantar sobre sua satisfação tanto com o serviço da empregada como também a possibilidade de distância: "Estou aliviada. Minha vida ficou mais fácil. Não faço nada e nem preciso falar com ela."

Ao longo da narrativa, Chabrol explicita o caráter de luta de classes do filme, bem como compõe o aumento gradativo do clima tenso entre os personagens e a revolta crescente entre as duas amigas trabalhadoras, criando um clima de suspense que faz jus à sua fama de mestre do gênero.

Jeanne convida Sophie para participar de um grupo beneficente da igreja que distribui donativos para os pobres. Deixando claro de que lado estão, não demoram para se rebelar contra os doadores miseráveis que querem desovar seus trastes e alimentos vencidos nos necessitados e são expulsas do grupo pelo padre.

Georges Lelièvre, industrial, explora também o ramo das sardinhas. Num momento bem-humorado do filme, Jeanne flagra os Lelièvre agindo, em outra escala, tal qual o pessoal dos donativos. Ao bisbilhotar a lista de compras de Sophie encomendada pelos patrões, repara que a marca da lata de sardinhas não é a mesma que produzem. "Sardinha? Mas eles fabricam. Vai ver é melhor que a deles!", diverte-se com a desova nos consumidores do produto de qualidade duvidosa.

Georges desconfia que Jeanne viola as correspondências que lhes são enviadas. Irritado, ao reclamar discute com a própria no correio. Mais tarde Jeanne desabafa com Sophie: "Eles são patéticos. Bancam os gentis, mas também, têm tudo. O maior problema deles é saber a cor do carro que vão comprar ou não deixar o primo roubar metade da herança da avó."

Noutro momento, perto do confronto que acontecerá, Sophie revela a Jeanne a conversa que ouviu pela extensão telefônica sobre a gravidez indesejada de Melinda e suas confidências com o namorado sobre um possível aborto. "Para eles não é um problema. Ficar ou tirar não é problema", comenta Jeanne. "Fiquei grávida, abandonada, sem ninguém pra me consolar, nem pra me dizer o que fazer ou aonde ir caso quisesse abortar." O desdobramento desse episódio evolui para um conflito entre Sophie e Melinda e a empregada acaba demitida pelos patrões.

Pelas privações e dramas pessoais que sempre encontraram na vida, um possível passado criminoso por parte de cada uma das amigas ("Não puderam provar!"repetia Sophie) não está fora de contexto. Além disso, certo fator psicótico se faz necessário para provocar a coragem espontânea do radicalismo de suas ações.

La Cérémonie (A Cerimônia) é uma expressão em francês que significa o desenrolar de acontecimentos que levam à morte na guilhotina. Chabrol costura a tensão que se desenvolve entre os ricos e os pobres para levar sua trama a um final que alude ao próprio título do filme. Um clímax que viria inclusive a ser uma das influências de Match Point, de Woody Allen, numa cena similar de grande impacto.

Não se tratava de uma questão pessoal. Os ricos eram boas pessoas, melhores que as garotas proletárias, mas o desfecho surpreendente e violento, tão macabro quanto poético, foi apenas a manifestação inevitável das contradições de classes explodindo numa fúria incontrolada e vingadora. Aconteceu o que estava fadado a acontecer, o que Chabrol nos insinuou durante todo seu grande filme, deixando claro que não havia espaço para conciliação. Apenas para a revolução. 

Como comentava o próprio Claude Chabrol: "La Cérémonie" é o último filme marxista.