sexta-feira, 9 de setembro de 2016

LUA DE FEL

(“Fomos muito ambiciosos, baby.”)





Assisti várias vezes LUA DE FEL (Bitter Moon), de 1992, grande sucesso de Roman Polanski. Diretor reconhecido como um gênio do cinema, com um currículo que inclui filmes antológicos como A Dança dos Vampiros, O Bebê de Rosemary, Chinatown, Repulsa ao Sexo, O Pianista, entre outros.

Entre os grandes filmes de Polanski, Lua de Fel é o épico do amor e ódio, intenso e obsessivo. Uma ópera sobre paixão e destruição.

Com sutilezas de humor aqui e ali e uma trilha sonora perfeita, o diretor polonês equilibra uma narrativa forte, fluente e visualmente fascinante, tornando seu filme um deleite para os olhos e sentidos, sem perder a profundidade de seu tema.

São quatro personagens principais. Dois casais: Oscar (Peter Coyote), escritor americano frustrado, vivendo em Paris (clichê satírico e charmoso), preso  numa cadeira de rodas, e Mimi (Emmanuelle Seigner), sua voluptuosa esposa francesa; e os discretos ingleses Nigel ( Hugh Grant) e Fiona (Kristin Scott Thomas), passando pelo período de sete anos de casamento. Todos a bordo de um transatlântico, num cruzeiro marítimo rumo a Istambul, interagindo entre jogos de sedução e flashbacks, acompanhados pela bela trilha sonora de Vangelis e por sucessos pop.

O filme é uma dança entre vários relacionamentos: Nigel e Mimi, Nigel e Oscar, Fiona e Nigel, Mimi e Fiona e, o mais radical, a história principal, Oscar e Mimi.

Mimi protagoniza o primeiro contato com o casal de ingleses. Não se sente bem no toilette, é acudida por Fiona, que pede ajuda a Nigel. Conduzem-na para uma cadeira no convés. Ela pergunta a Fiona se vão para Istambul. “Sim, e depois vamos voar para Bombaim. E você?”, retorna a inglesa. “Mais longe. Bem mais longe”, é a resposta enigmática de Mimi.

À noite, Hugh Grant, com aquele seu jeito de inglês paspalhão, volta a encontrar Mimi no bar. Sente atração pela beleza da jovem francesa e isso é o estopim para o desenrolar dos acontecimentos no navio.

É também a deixa para a entrada em cena de Peter Coyote. Após o bar, Nigel está no convés quando surge Oscar e apresenta-se como marido de Mimi. “Veja o que ela me fez”, e descobre suas pernas na cadeira de rodas em que se locomove com dificuldade. Provoca o inglês: “Você queria trepar com ela. Admita, não é crime”. Nigel, um pouco desconcertado, balbuciando alguma coisa, sem conseguir negar, segue ouvindo Oscar. “Está louco para saber mais sobre ela, não é?” continua o americano. Convence Hugh Grant a levá-lo para sua cabine e ouvir o que tem a dizer: “Não conheço você, Nigel, mas tenho a impressão de que é exatamente o ouvinte que eu procurava. Espero que ache minha história interessante”.

Em seus aposentos, Oscar passa a contar a história dele e Mimi para um Nigel constrangido mas curioso. Passamos para a narração em flashback. Oscar em Paris, sem conseguir publicar nada, filho de uma família rica, mas, what a hell, era Paris!! O que importava? Conta como encontrou Mimi. Como se conheceram no ônibus 96 entre Montparnasse e Porte des Lilas. Ela apaixonada, ele sentindo-se no paraíso, seus jogos de amor, volúpia e sexo. Um idílio inebriante, o delírio dos amantes.

Oscar vai contando sua história por partes. Mais tarde, encontra Nigel e Fiona no restaurante. “Toda relação, mesmo harmoniosa, contém sementes de farsa ou de tragédia”, comenta com o casal, seu humor ácido sempre presente.

Entre idas e vindas de Nigel à cabine do americano, a narrativa continua. O êxtase do amor, mas, depois, também, as primeiras brigas, as primeiras decepções, o tédio. Qual é o ponto em que o amor vira o fio? Em que o desinteresse substitui o ardor? Oscar deriva para estas inflexões.

“As estações iam e vinham. O rosto de Mimi ainda tinha mil mistérios para mim. Seu corpo, mil promessas de doces. Mas, no fundo de minha mente, havia o medo de que já havíamos chegado ao auge do nosso relacionamento e que, agora, ele começaria a desmoronar”.

Após um incidente sexual inesperado, “abriu-se todo tipo de possibilidades”. “Nós nos fechamos com nossos brinquedos semanas a fio, sem sair, vendo somente um ao outro. Acho que era pedir demais para qualquer casal.”

Numa danceteria em Paris, recorda Oscar, Mimi provocou seu ciúme numa performance sensual com um colega da escola de dança. “Sempre achei a infidelidade o aspecto mais estimulante de uma relação. Aquela cena devia ter me excitado. Por que não me excitou? Por que fiquei tão magoado?”

Veio a briga e as pazes“Eu também a amava, mas estávamos caminhando para uma falência sexual”. As brincadeiras eróticas não tinham mais graça. “Finalmente o encanto estava desfeito.”

Na sessão seguinte, Nigel demonstra impaciência com os jogos de Oscar e Mimi para com ele. O americano justifica a brincadeira feita e explica a vontade da esposa francesa: quer que ele conte o resto da história, para que ela possa ter chances com Nigel. Esse externa seu mal-estar com o jogo aberto (“Você é um cafetão?”) mas Oscar não se perturba: “Não a censuro por procurar o que já não posso oferecer. Supervisiono os casos dela, em vez de me submeter a eles. Você pode tê-la, Nigel, com minha benção, mas com uma condição. Ouvir-me!”

O inglês se acalma e senta na cadeira de rodas do interlocutor. “Tenha compaixão, Nigel. Não seja duro com um homem destruído por um amor intenso demais. Os casais deviam se separar no auge da paixão e não esperar até o inevitável declínio.”

“Meu desejo por ela havia começado a diminuir. Lá estava ela deitada, maravilhosa, voluptuosa. E não significava nada para mim. Ressentia-me do fato de que ela não me excitava mais como antes. Estávamos ficando dependentes da televisão, que permite que os casais se aturem sem precisar conversar.”

“Passei a recear a hora de dormir. Sentia uma tremenda vontade de dormir. Eu ficava com pena dela. Deitada, seu corpo gritando, ávido, os órgãos em tumulto. Apertava meus lábios contra os dela como se amassa um cigarro em um cinzeiro.”

“Sentia-me como um rato numa armadilha. Paris vibrava com seus ritmos frenéticos. Batiam em minha cabeça, enlouqueciam-me. Eu queria variedade. Tinha fome de barulho e excitação.”

Oscar tentou terminar o romance. “Estou me destruindo ao lhe destruir”, falou para Mimi, continuando sua história. Nigel ouvindo. “Estamos nos destruindo, pelo amor de Deus. Vamos preservar uma bela recordação. Vamos nos separar enquanto nos resta dignidade.”

Nunca é fácil encarar uma separação. Se no navio Mimi é uma femme fatale, naqueles dias de Paris, antes de sua vingança, era apenas uma garota que se recusava a aceitar o fim implacável daquilo que já não se sustentava. Humilhou-se. Foi humilhada. Libertou-se o inferno. Retornou e devolveu a mesma crueldade. (“Idiota. Achou que eu tivesse esquecido?”)

O relacionamento de Nigel e Fiona também é posto à prova. Essa, percebendo claramente o novo interesse do marido, alerta-o: “Watch, Nigel. Anything you can do, I can do better.” Depois, ela provará sua afirmativa em uma das cenas mais sensuais do filme.

Nigel continua suas sessões com Oscar. Esse comenta seu casamento com Mimi: “Precisávamos um do outro, ela e eu. Era uma espécie de catarse, eu acho. Sabíamos que não alcançaríamos os mesmos extremos de paixão e crueldade com mais ninguém.”

Oscar e Mimi, de certa forma, se reconciliam ao final. De uma maneira estranha, trágica, definitiva. Entendemos as palavras da garota no início do filme (“Mais longe. Bem mais longe.”). Como se esse desfecho fosse esperado. Em algum momento. E desejado.

Entre cenas no navio e recordações de Paris, Polanski vai construindo e desconstruindo o processo de uma relação obsessiva, fervorosa e desgastante. Do amor ao ódio (as duas faces da mesma moeda?). A transmutação dos sentimentos é o mote que o diretor desenvolve nessa vertigem que envolve seus personagens, como se fosse um embate sórdido entre Eros e Thanatos. Toda essa epopeia pode ser resumida nas últimas palavras de Oscar:

Fomos muito ambiciosos, baby.