terça-feira, 15 de novembro de 2016

CÓPIA FIEL

(“Esqueça o original. Consiga uma boa cópia.”)




O mundo do cinema ficou um pouco mais órfão com a morte de Abbas Kiarostami, em julho de 2016. Principal nome do cinema iraniano que invadiu o Ocidente a partir da segunda metade dos anos oitenta, com sua temática sensível e universal, Kiarostami é considerado um dos maiores diretores de todos os tempos. A definição de Goddard é emblemática: “O cinema começou com D. W. Griffith e terminou com Abbas Kiarostami”.

Deixou um legado composto por grandes clássicos, como Gosto de Cereja, Através das Oliveiras, O Vento nos Levará, Close-Up, Onde Fica a Casa do Meu Amigo?, Dez e o extraordinário CÓPIA FIEL (Copie Conforme), de 2010, coprodução França-Itália-Bélgica, com Juliette Binoche e William Shimell, filmado no sudoeste da Toscana. Kiarostami, além da direção, também é responsável pelo roteiro. A fotografia expressiva é de Luca Bigazzi.

Meu interesse por Cópia Fiel foi renovado pelas conversas com meus amigos arquitetos e cinéfilos, Paulo Cesa, fã do filme, Joca Petrucci e Renato Menegotto. Em nossas discussões confirmávamos o que já havia sido escrito na imprensa: cada vez que revíamos o filme surgiam sempre mais perguntas que respostas. Cada possível interpretação que desenvolvíamos originava novos questionamentos. Uma fábula instigante, bela e sutil sobre original e cópia, arte, percepção, simplicidade, relacionamentos, incomunicabilidade, modernidade, imagens, reflexos, ilusões e condição humana.

William Shimell é James Miller, escritor britânico. Juliette Binoche é a proprietária francesa de uma galeria de arte, cujo nome nunca é revelado. E o ator mirim Adrian Moore  é  seu filho Julien.

Podemos dividir o filme em quatro etapas narrativas, todas interligadas: James palestrando sobre seu livro na Toscana; Juliette Binoche e o filho pré-adolescente; ela e James conhecendo-se e ela e James como casal.

Na palestra sobre seu livro, Copie Conforme, James Miller inicia comentando o subtítulo provocativo que agregou a pedido dos editores: Esqueça o original. Consiga uma boa cópia. Simultânea à referência do escritor ao subtítulo, a câmera apresenta a imagem de um menino em pé a um canto, gesticulando para sua mãe, Binoche, sentada na primeira fila. Aliás, tanto a mãe quanto o garoto tinham assentos reservados.

James discorre sobre conceitos de originalidade e cópia. “Minha intenção era mostrar que uma cópia tem importância, que ela remete ao original e atesta seu valor.” Comenta o tema em termos de contextualização histórica e faz um paralelo com a reprodução humana. “Afinal, pode-se dizer que somos a réplica do DNA dos nossos antepassados.”

O tema cópia e original estará sempre presente em todo o transcorrer do filme, mesmo que de forma velada.

Binoche sai mais cedo da palestra porque o filho estava com fome, não parava quieto. Caminha pelas ruas da cidade italiana sempre à frente do garoto, que a segue jogando seu videogame. Ele, tranquilo; ela, impaciente. Uma das melhores cenas, entre tantas ótimas, é o confronto bem-humorado entre o menino e sua mãe, numa mesa de lanchonete. O garoto tira sarro dela, provocando-a por um bilhete que deixou para o escritor e pela compra de várias cópias do livro (para serem autografadas e dadas como presentes). “Sei que gosta desse James e decidiu se apaixonar por ele, e deu seu número ao amigo dele pra ele telefonar”. Ela explica que quer saber mais sobre o livro, mas vai ficando irritada, enquanto o menino, que rouba essa cena, se diverte. Parece que antecipa um evento que acontecerá mais tarde, ao questionar, rindo: “Por que não quis meu sobrenome na dedicatória? Eu tenho um sobrenome, sabe?”

James recebeu o bilhete. Uma das belas cenas do filme é o enquadramento do escritor na escada entre as paredes antigas do subterrâneo italiano, entrada da loja de antiguidades de Juliette Binoche. A câmera embaixo acompanhando a descida do inglês. “Vejo que temos um interesse em comum”, fala o escritor para a anfitriã francesa, observando as peças da loja, cópias e originais. “É melhor manter um distanciamento. Elas são atraentes mas podem lhe fazer mal. Podem ser perigosas à sua maneira. Eu as estudo, as admiro, escrevo sobre elas, mas também mantenho meu distanciamento.”  O culto às imagens e suas ilusões na civilização ocidental é um dos temas abordados por Kiarostami, bem exemplificado na ambientação italiana.

Embora a ação se passe na Itália, o filme é falado em três idiomas: italiano, francês e inglês. O diálogo inicial entre a mãe e o filho é em francês; ela e James, nesse início de contato, comunicam-se em inglês, a língua de James.

Ele propõe a ela que saiam à rua, o dia está bonito. A francesa o convida para embarcarem no carro dela e depois um passeio até o vilarejo de Lucignano. Ele concorda mas faz a ressalva que deve voltar até às 21h para pegar o trem. No trajeto discorrem sobre vários temas: sentido da existência, diversão, prazer, o interesse pelo livro dele, arte, cópias e originais (“Jóias falsas são tão boas quanto as originais. Não precisa se preocupar com elas”, Binoche cita sua irmã Marie), simplicidade (“Não é simples ser simples”, afirma James; “Qual é o limite entre uma pessoa simples e uma mente simples?”, pergunta ela; “A resposta não é simples”, responde o escritor; ela comenta sobre a irmã: “É casada com o homem mais simples do mundo”).

Conta que o marido da irmã é gago. Quando ele a chama Ma-ma-ma-ma-marie, para ela é como uma canção de amor.

Num trecho da estrada, entre as belas paisagens da Toscana, James observa: “Veja esses ciprestes. São bonitos. São singulares. Você nunca vê dois ciprestes iguais. São árvores antigas. Me disseram que existe um com mil anos de vida. Originalidade, beleza, idade, funcionalidade. São as definições de uma obra de arte. Porém, eles não estão numa galeria. Estão num campo, então ninguém presta atenção.” A discussão cópia versus original  questiona os conceitos da arte e a nossa própria percepção do objeto artístico.

Parecem duas pessoas que estão se conhecendo, mas aos poucos o tom vai ficando mais íntimo, ela demonstrando, às vezes, certa animosidade em relação a ele e sendo sempre o contraponto às teorias do escritor.

Ao chegarem em Lucignano e depararem com vários casais, de ternos e vestidos de noiva, ela explica que eles vêm se casar ali porque acham que dá sorte, existe uma árvore dourada onde juram fidelidade para sempre. “Você se casou aqui?”, pergunta James. Ela não responde, olha rapidamente para ele e atende o celular que está chamando...

Conversa ao telefone com a irmã, o filho está aloprando. Queixa-se de sua irresponsabilidade. Reclama para James que ela é que lida com as consequências, que paga por isso. James tenta defender o menino: “As crianças vivem para o momento, querem se divertir. Não pensam nas consequências ou nos custos. Porque é parte do jogo, não é uma despesa.” Mas não obtém a concordância da mãe.

Binoche os conduz ao museu onde está exposta uma pintura que chamam de cópia original. “Descobriram que é uma cópia há 50 anos, mas achavam que era um original por muitos séculos”, explica. De acordo com o guia de uma excursão, em italiano, “nesse caso, a cópia é tão bela quanto o original”. James não se mostra muito entusiasmado. Conforme seu entendimento, os admiradores dizem o quanto adoram a pintura mas sempre ressaltam que é uma cópia, cujo original está em outro lugar. “Está em Herculano, isso é fato. As pessoas precisam saber, não?”, questiona ela. “Por quê?”, retruca James. “Que diferença faz? O original é uma reprodução da beleza da moça retratada. Ela é o original. Mas, se você pensar assim, até a Mona Lisa é uma reprodução da Gioconda. E aquele sorriso? Acha que é algo original, ou Leonardo pediu que ela sorrisse assim?”

Voltam às belas ruas do vilarejo.
- Quer dizer que não há originais? – pergunta a francesa.
- Não exatamente. Há muitos originais – responde o inglês.
- Onde?
- Se me der um café, eu conto.
- Fica na esquina, estamos chegando. Então, onde está o seu original?
- Na casa de sua irmã.
- É mesmo? Na casa da minha irmã? Onde?
- É o marido dela – responde James sorrindo.
- Oh, come on...- irrita-se ela. (O marido da irmã é o “homem simples.”)

A partir do momento que entram na cafeteria de uma senhora italiana, temos um divisor de águas no filme. Algo que já se insinuava.

Sentados numa mesa, enquanto esperam o café, Juliette Binoche refere-se ao comentário de James sobre como surgiu a ideia do livro, na Piazza della Signora, em Florença. James explica que lhe chamou a atenção uma conversa entre mãe e filho, na praça, perto da estátua de David. A mãe dizia alguma coisa para o filho sobre a estátua, em francês. Ela pergunta o que ele achou de especial nessas pessoas. O inglês responde que naquela época, uns cinco anos atrás, estava em Florença para uma conferência, mas todas as manhãs observava, de sua janela do hotel, a mesma mulher descendo a rua. Ela chegava à esquina, parava, e olhava rua acima até enxergar um garotinho de oito anos, sempre atrás. A mulher “sempre de braços cruzados, como você”, comenta James. Quando se certificava que o garoto a seguia, continuava. O que o fascinava era que eles nunca caminhavam juntos. Ela nunca esperava e o menino nunca tentava alcançá-la. Mas naquela ocasião ele os vira juntos na praça pela primeira vez. O garoto sentado perto da estátua de David por um longo tempo, até a mãe se aproximar.

“Isso me parece familiar”, comenta Binoche, agora com lágrimas nos olhos, transparecendo a emoção que aos poucos se manifestava à medida que James apresentava sua história. Esse para um pouco, percebe a emoção de sua interlocutora e entende o que está acontecendo. Pede desculpas meio sem jeito, não sabia. Ela explica, “eu não estava bem naquela época”.

Ele ainda relata que a estátua é apenas uma cópia, o original está na Accademia, mas a mãe não contou e “o garoto olhava a estátua como se fosse uma genuína, original e autêntica obra de arte”. O celular toca e James levantá-se para atendê-lo do lado de fora do café.

A senhora que trabalha na cafeteria puxa assunto com a moça francesa. Conversam em italiano. Acha que James é marido dela, que não desmente. Admira-se que ela fala a língua dele, inglês, e ele não fala a dela. Binoche conta que está há cinco anos na Itália, primeiro em Florença, depois em Arezzo e, incentivada pela conversa, confidencia queixas contra o marido, que não lhe dá a devida atenção, não se importa com ela (“Meu marido faz a barba dia sim, dia não. O  dia do nosso casamento foi de não fazer.”), só pensa em si e no seu trabalho. A italiana, numa atitude conservadora ou sábia, defende James e os homens: “Eles não têm escolha. Para eles, não trabalhar é como não respirar, é impossível”.

James retorna ao interior do café. A senhora comenta:
- Estranho ele não falar italiano depois de cinco anos aqui com a sua família.
O escritor não entende italiano e vira-se para a sua companhia.
- Ela achou que você fosse meu marido. Eu não a corrigi – explica a francesa.
James, num princípio de flerte, comenta:
- Oh, really? Obviamente, fazemos um belo casal. O que acha? O que ela disse?
- Ela está surpresa por você não falar italiano, já que sua mulher e filho vivem aqui.
- Não é totalmente culpa minha. Aprendi francês na escola. O que devo dizer agora?

Ela desconversa, mas é a partir dessa pergunta que James Miller passa a incorporar a cópia fiel do marido de Binoche, algo que ela parecia desejar. Com relação à personagem seu nome nunca fora pronunciado, e quando da dedicatória para o filho o sobrenome fora omitido, o que o menino percebera. De certa forma era como se ela tivesse a premonição do papel de esposa do Sr. Miller. O jogo que se insinuava entre eles agora será mais radical.

James comete uma declaração infeliz, entrando no espírito do alter ego: “Minha família vive sua vida e eu vivo a minha. Eles falam sua língua e eu falo a minha. Faz sentido, não?”

Ela irrita-se enquanto saem do café. Atende o celular, já na rua, e censura o filho. “É a cópia fiel do pai.” James retruca um pouco depois: “Não é justo você me dar o papel do pai ausente”.

Passam a discutir como se fossem um casal. O que ela reclama do filho, irresponsável, e ela a responsável, inverte em relação ao suposto companheiro. Critica-o por trabalhar demais, ser responsável demais, e não viver junto a ela.

Questionamentos, incomunicabilidade, idiossincrasias, intolerância, ilusões, realidade, a arte, as diferenças, o masculino, o feminino, tudo isso passa a se manifestar em suas interações. Mas também, aos poucos, o resgate do afeto, a atração, as belas recordações.

Após caminharem um pouco, já mais calma, ela conduz James ao local onde os casais, devidamente trajados como noivos, todos cópias uns dos outros, nas vestes e nos sonhos, tiram fotos e fazem as promessas de amor eterno junto à árvore simbólica. Ela, comovida; ele, irritado com a ingenuidade, com as ilusões.

Na praça onde fica uma estátua que ela admira (“Está parecendo seu filho”, ele comenta lembrando-se de Florença), por entender que seja um símbolo romântico e artístico (uma mulher repousa a cabeça no ombro de um homem), James encontra-se mais tranquilo, senta ao lado dela na pequena mureta que rodeia a fonte e passam a conversar em francês (ele falando a língua dela, mostrando-se mais próximo). Mas continuam discordando, agora pelo teor da escultura.

Em Cópia Fiel, muitas imagens são apresentadas em superfícies reflexivas (não é o reflexo uma cópia da imagem original? nossas vidas são reflexos do que poderia ser original?). Como na cena em que ele admira uma motocicleta, como se quisesse dar o fora dali, flertasse com sua liberdade, e a imagem de Juliette Binoche interagindo com os turistas, conversando sobre a estátua, aparece refletida num espelho vertical e no retrovisor da moto.

Ela puxa James para ouvir a opinião de um casal de italianos sobre a obra. O senhor, num momento a sós com o inglês, passa-lhe um conselho: “Acho que a única coisa que ela pede é que você caminhe ao lado dela e coloque a mão no seu ombro. É só o que ela espera. Mas, para ela, é vital. Todos os seus problemas poderiam ser apagados com um simples gesto. Faça esse gesto e liberte-se”. A caminho de um restaurante James encosta a mão no ombro de sua acompanhante.   

No toilette do estabelecimento, na cena mais icônica do filme, em frente a um espelho, ela passa batom nos lábios e enfeita-se com brincos. Embeleza-se para ele. Mas basta um vinho ruim numa trattoria qualquer para reacender o pavio do rancor e da intolerância. Discutem. Não se entendem. Agora, ele fala inglês, ela fala francês.

Saem do restaurante, ela caminhando na frente, ele atrás (como uma cópia dela e o filho). Temos um belo enquadramento propiciado pelo olhar sensível de Kiarostami, ambos chegando na igreja histórica e o contraste de escala entre eles e o prédio. O poder do sagrado presente na transição do estado de espírito do casal. Ela entra na igreja e ele espera do lado de fora. Estão calmos. Quando saem, agora uma distância menor entre eles, Juliette Binoche inveja um casal de velhos à frente, alquebrados e juntos.

Quando ele a alcança sentada nos degraus da entrada de uma pensione, voltam a conversar em francês. Sobre a ida à igreja, sobre a indiferença dele ao não reparar que ela se enfeitara: “O problema é que você não me vê”. Ela, por sua vez, percebera que ele mudara de perfume. Repousa o rosto no ombro dele, tal qual a estátua da praça. “Podia ter feito a barba para mim hoje. Pelo nosso aniversário”, o repreende de forma carinhosa. “É o hábito. Faço a barba dia sim, dia não”, explica James (acentuando o tom de fábula, constante no filme). “Eu sei”, ela completa.

Entram no pequeno hotel e James segue a francesa ao mesmo quarto da lua de mel. Ela está na cama, olhando para ele. É o momento das recordações (“Deitada aqui, assim...eu me lembro de tudo.”); da ternura esquecida (“Está ainda mais bela”, flerta James); da reflexão (“Se fôssemos mais tolerantes com as fraquezas alheias, seríamos menos sós”, conclui ela); da tentativa de reconciliação (“Fique. Fique. É melhor. Para nós dois, é melhor. Para você e para mim. Nos dê uma chance”, é o convite dela).

- Eu já lhe disse. Preciso estar na estação às 21h - responde James, com a voz calma, retornando em parte à realidade.
- Sim, eu sei... – ela concorda .
- Ja-ja-ja-ja-james – entoa, triste, com ternura, aceitando a situação.

O personagem de James Miller, estereótipo do homem fechado em si mesmo, está sendo posto à prova. Ele baixa um pouco a cabeça, devolve o olhar terno, levanta-se, e postado em frente a um espelho, como a cena dela na trattoria, pensa um pouco (é tudo uma ilusão? ou não?), os sinos da igreja badalam emoldurados pela janela, alisa o cabelo, e depois de alguns instantes, como que impelido pelos sinos, retorna ao quarto...

Sutilezas, questionamentos, discussões interessantes e maestria com a linguagem do cinema marcam o tom da obra de Abbas Kiarostami. E grande parte do vigor do filme, como componente vital, deve-se creditar à interpretação emotiva e sensível de Juliette Binoche, premiada em Cannes por esse desempenho. Suas cenas em close, contracenando com a câmera, são grandes momentos de magia cinematográfica.

A riqueza de Cópia Fiel proporciona vários olhares diferenciados por quem assiste, mas o importante é que a emoção e a beleza estão presentes com toda sua força. Em cópia ou original.