(“Você nunca me amou! Você ama o amor que dedico a você!”)

Se ficção científica e filosofia é uma
associação obrigatória como garantia de qualidade do gênero, terror e
psicologia é outra combinação que se impõe da mesma maneira. Darren Aronofsky,
cineasta norte-americano, com CISNE
NEGRO (Black Swan), 2010, e MÃE!
(Mother!), 2017, revela-se como representante visceral dessa corrente. Digamos,
de maneira simplificada, que o cara faz filmes de terror de arte. E apresenta-se
como legítimo interlocutor e defensor da alma feminina, retratando mulheres
frágeis, oprimidas, aparentemente indefesas, que se transformam na defesa de
seus sonhos e de seu mundo. Ambos os filmes, narrados do ponto de vista das
protagonistas femininas, são fábulas perturbadoras, expressivas e cinema de
apurado requinte técnico.
Em Cisne Negro, Natalie Portman é Nina
Sayers, bailarina do New York City Ballet promovida para o papel de Rainha Cisne,
numa versão moderna do ballet clássico O Lago dos Cisnes, no qual interpretará tanto
o Cisne Branco como o Cisne Negro. Tímida, insegura, tratada como criança e extremamente
reprimida pela mãe (a materialização do superego) e por si própria, como observa
o diretor do ballet, Vincent Cassel (esse um personagem marcado pelo narcisismo),
Nina, em conflito com sua dupla personalidade, o principal tema do filme, é
perfeita para o papel de Cisne Branco, como se confirma nos ensaios, mas não consegue se soltar para a
performance do Cisne Negro (representação do id).
Mila Kunis, a colega bailarina Lilly, é o
alter ego de Nina. Lilly é a garota descolada, transgressora, livre das
amarras, a menina que chegou de San Francisco. Não tem precisão mas é
espontânea quando dança. Sua presença em cena é irresistível. Representa o
próprio Cisne Negro. A faceta dark, ousada, sedutora que Nina reluta em
aceitar, mas ao mesmo tempo lhe provoca atração e desejo. Não por acaso as duas
personagens protagonizam uma das melhores cenas do filme...
O uso de espelhos é presença constante no
treinamento dia a dia do ballet. O diretor utiliza esse elemento em conjunto com
várias superfícies reflexivas ilustrando o tema da dupla personalidade de Nina,
ao mesmo tempo em que incorpora artifícios de filmes de terror, mas sempre de
uma maneira criativa, imprimindo tensão e interesse à trama sempre sombria. Inclusive,
noutra cena importante entre Nina e Lilly, um estilhaço de espelho chega a ser usado
como arma.
A interpretação sensacional de Natalie
Portman, dançando e atuando, digna do Oscar que recebeu, traz profundidade ao doloroso
processo de transmutação da personagem em Cisne Negro. Autoflagelação, como se
arrancasse a pele antiga para substituir por uma nova, e fantasias soturnas
fazem parte do transcurso. Nina sofre mas luta contra a culpa imposta pela dualidade
da repressão materna e a aceitação dos próprios instintos. Seu processo de
transcendência, sua busca desesperada pela perfeição, esse ideal efêmero ao
qual se agarra para resolver seu conflito, só encontrará realização num ato
final radical. Apenas a morte (ou quase) poderia capturá-la? Encontrará assim a
liberdade? Ou uma vida represada se apaga para dar lugar a uma nova? Intenso e
angustiante, plasticamente irretocável, Cisne Negro é um filme para ver e
rever sempre com interesse. Um interesse instigante, vigoroso, obscuro e repleto
de simbolismos.
Em Mãe! a proposta de Darren Aronofsky é
mais radical. Assisti ao filme numa ensolarada Lisboa do mês de setembro, de
céu sempre azul, um contraste brutal com o tema sombrio e desesperador desse
conto fantástico sobre a alma feminina em meio ao caos da existência em que
vivemos.
Se em Cisne Negro a garota é sufocada
pela mãe e por sua própria personalidade, em Mãe! o mundo de Jennifer
Lawrence, o mundo feminino, a casa, o marido, o filho que nascerá depois, é
constantemente ameaçado por intromissões exteriores. E o marido não lhe dá a
mínima. Mãe! também pode ser interpretado como uma fábula sobre devastação ambiental,
onde a figura materna representa a natureza, a casa seria o planeta e os
intrusos, a civilização destrutiva. Ou ainda como alegoria bíblica.
Motivado pela polêmica criada em torno do tom
extremamente perturbador do filme, Martin Scorsese saiu em defesa de Mother!, através de um artigo no Hollywood Reporter: "É um filme que precisa ser explicado? E a experiência de assistir
a Mãe!? Foi tão tátil, lindamente encenado - a câmera subjetiva e os ângulos reversos, sempre
em movimento... o design de som, que vem ao espectador pelos cantos e o leva
cada vez mais para as profundezas deste pesadelo... o desenrolar da história,
que gradualmente se torna mais e mais perturbador conforme o filme avança. O
terror, a comédia sombria, os elementos bíblicos, a fábula cautelar - eles
estão todos lá, mas eles são elementos da experiência total, que engole os
personagens e os espectadores junto deles. Somente um verdadeiro e apaixonado cineasta poderia ter feito esse
longa.”
Jennifer Lawrence e Javier Bardem vivem num
casarão retirado em constante reforma. Reforma que Jennifer pegou como tarefa
para si, o que lhe proporciona grande satisfação. Afinal, é a casa do marido
que ela está reconstruindo como prova indiscutível do seu amor. Bardem, o
marido, é um escritor que não consegue escrever. Os primeiros intrusos que se
insinuam no lar da jovem protagonista são o casal Ed Harris e Michelle
Pfeiffer. O diretor não identifica seus personagens principais com nomes
próprios, conferindo um caráter universal a sua narrativa.
Ed Harris aparece como um médico que
precisa de ajuda e é recebido por Javier Bardem. Descobre-se depois que na
verdade ele é um fã do escritor. É o suficiente para Bardem dedicar-lhe toda
atenção, deixando de lado a esposa para quem já havíamos percebido sua
indiferença. Convida Harris para pernoitar na casa, mesmo com o sentimento de
desconforto que a jovem companheira externa. É o início de um processo de violação
ao mundo de Jennifer Lawrence. Depois aparece Michelle Pfeiffer como esposa do
convidado. Espaçosa, intrometida, ela prenuncia em quão preocupante a situação
poderá se transformar. Se Harris rouba a atenção do marido, Pfeiffer adentra a privacidade
de Jennifer com perguntas invasivas e atitudes sem constrangimento. Começamos
a nos sentir incomodados, tal qual a garota anfitriã.
Javier Bardem guarda em seus aposentos, num
pedestal, uma espécie de joia do tamanho da palma de uma mão, dedicando-lhe
todo cuidado. Explica para Ed Harris que certa vez perdera tudo num incêndio e
aquele objeto era tudo que lhe restara (no final do filme entenderemos o
significado). Não permite que ninguém o toque. Quando o casal de hóspedes o
quebra acidentalmente, o panorama na casa começa a ficar fora de controle,
agravado com a chegada de dois rapazes adultos, filhos de Harris e Pfeiffer. Os irmãos, referência a Caim e Abel, brigam entre si por causa do testamento do pai.
Michelle Pfeiffer comenta com Jennifer
Lawrence que os filhos só trazem desgosto. Você os ama intensamente mas eles
não retribuem. Assim como Jennifer e o marido, relação já insinuada pela hóspede
(“Look at you! Se ele não está o tempo todo em cima de você, alguma coisa está errada”).
Ela percebe que a bela jovem realmente ama o companheiro, mas não há
reciprocidade. Parece ser a sina da condição feminina, amar mas não ser amada.
Uma morte acontece e mais intrusos invadem
a casa, ameaçando a vida íntima de Jennifer, seu lar e as reformas às quais se
dedicou. A desordem se instaura sem pedir licença.
Então, após o incidente do velório,
sobrevém um período de paz aparente. Voltam a ficar a sós em seu casarão.
Jennifer e Bardem se desentendem (“Você não é capaz nem de me comer!”, ela
grita) e em seguida reconciliam-se numa cena de sexo carregada de raiva e
desejo represado. Passa-se um tempo e a jovem anuncia que está grávida. Uma
vida havia se esvaído, mas outra está por nascer. Este milagre da vida, a
geração de um novo ser, inspira o escritor a superar sua impotência e voltar a
escrever. Bardem transforma-se, está exultante e cheio de energia.
Seu novo livro é um sucesso. Como
consequência, a paz do lar está novamente ameaçada. Primeiro a imprensa, depois
multidões de admiradores. Depois, ainda, hordas de fanáticos, todos estimulados
pelo conteúdo do livro, o (re)nascimento da vida (como se fosse uma bíblia). Sempre os outros merecem mais
atenção de Bardem. A esposa é sempre preterida. Seu trabalho, amigos, fãs, estranhos,
narcisismo estão sempre em primeiro lugar.
A situação torna-se intolerável.
Ela, grávida, sua casa se demolindo, o caos tomando conta do seu mundo. A
angústia que sentia desde o começo do filme, agora é puro desespero. E é
assim também que nos sentimos desde o início, incomodados, perturbados,
e da metade em diante do filme, desesperados. E Darren Aronofsky não alivia. Apesar de
alguns instantes de humor negro, sentimos o mesmo pavor que Jennifer Lawrence.
Um pavor que cresce à medida que se aproxima o momento de ela dar à luz. Já não
se reconhece mais o interior da casa das reformas e mistérios, transformou-se
num campo de batalha. Estamos num pesadelo sem fim, nós e Jennifer.
Nesse cenário de caos, o caos que é a
síntese da própria natureza da civilização, só se encontra um breve momento de
paz quando a criança nasce. Um novo ser, um ser amparado pelo milagre da vida,
que, como um predestinado, vítima inocente da ilusão, poderá conferir sentido a
um mundo repleto de desordem e desespero. Poderá redimir aquele mundo que o
gerou.
No entanto, a trégua dura pouco.
Referências bíblicas são evocadas quando a criança é arrancada da guarda de sua
mãe. Agora, a mulher, a mãe, se dá conta que o mundo que ela cultiva nunca terá
paz, nunca será verdadeiramente seu, como não é o filho que nasceu, sacrificado
pela fantasia da redenção. O caos que ordena a realidade, o mundo exterior (seu
marido aliando-se a ele) está sempre invadindo seus recantos, sempre se impondo
com violência, opressão e fanatismo. Sua casa, seu santuário, sangra como ela. E
então, aquela criatura que era dócil, assustada, submissa reage com uma fúria
que literalmente não deixará pedra sobre pedra. A fúria de quem foi impotente
para defender sua cria. A fúria de quem se rebela contra os algozes com o peso das dores acumuladas em seu ventre e âmago. Para depois tudo continuar como
sempre foi.
No clímax do filme, Jennifer Lawrence (também
como voz do próprio sofrimento humano) confronta a alma feminina e a alma
masculina, contestando Javier Bardem como homem e como o ser onipotente revelado ao final:
Você
nunca me amou! Você ama o amor que dedico a você!