sábado, 25 de novembro de 2017

CISNE NEGRO / MÃE !

(“Você nunca me amou! Você ama o amor que dedico a você!”)



 


Se ficção científica e filosofia é uma associação obrigatória como garantia de qualidade do gênero, terror e psicologia é outra combinação que se impõe da mesma maneira. Darren Aronofsky, cineasta norte-americano, com CISNE NEGRO (Black Swan), 2010, e MÃE! (Mother!), 2017, revela-se como representante visceral dessa corrente. Digamos, de maneira simplificada, que o cara faz filmes de terror de arte. E apresenta-se como legítimo interlocutor e defensor da alma feminina, retratando mulheres frágeis, oprimidas, aparentemente indefesas, que se transformam na defesa de seus sonhos e de seu mundo. Ambos os filmes, narrados do ponto de vista das protagonistas femininas, são fábulas perturbadoras, expressivas e cinema de apurado requinte técnico.

Em Cisne Negro, Natalie Portman é Nina Sayers, bailarina do New York City Ballet promovida para o papel de Rainha Cisne, numa versão moderna do ballet clássico O Lago dos Cisnes, no qual interpretará tanto o Cisne Branco como o Cisne Negro. Tímida, insegura, tratada como criança e extremamente reprimida pela mãe (a materialização do superego) e por si própria, como observa o diretor do ballet, Vincent Cassel (esse um personagem marcado pelo narcisismo), Nina, em conflito com sua dupla personalidade, o principal tema do filme, é perfeita para o papel de Cisne Branco, como se confirma nos ensaios, mas não consegue se soltar para a performance do Cisne Negro (representação do id).

Mila Kunis, a colega bailarina Lilly, é o alter ego de Nina. Lilly é a garota descolada, transgressora, livre das amarras, a menina que chegou de San Francisco. Não tem precisão mas é espontânea quando dança. Sua presença em cena é irresistível. Representa o próprio Cisne Negro. A faceta dark, ousada, sedutora que Nina reluta em aceitar, mas ao mesmo tempo lhe provoca atração e desejo. Não por acaso as duas personagens protagonizam uma das melhores cenas do filme... 

O uso de espelhos é presença constante no treinamento dia a dia do ballet. O diretor utiliza esse elemento em conjunto com várias superfícies reflexivas ilustrando o tema da dupla personalidade de Nina, ao mesmo tempo em que incorpora artifícios de filmes de terror, mas sempre de uma maneira criativa, imprimindo tensão e interesse à trama sempre sombria. Inclusive, noutra cena importante entre Nina e Lilly, um estilhaço de espelho chega a ser usado como arma.

A interpretação sensacional de Natalie Portman, dançando e atuando, digna do Oscar que recebeu, traz profundidade ao doloroso processo de transmutação da personagem em Cisne Negro. Autoflagelação, como se arrancasse a pele antiga para substituir por uma nova, e fantasias soturnas fazem parte do transcurso. Nina sofre mas luta contra a culpa imposta pela dualidade da repressão materna e a aceitação dos próprios instintos. Seu processo de transcendência, sua busca desesperada pela perfeição, esse ideal efêmero ao qual se agarra para resolver seu conflito, só encontrará realização num ato final radical. Apenas a morte (ou quase) poderia capturá-la? Encontrará assim a liberdade? Ou uma vida represada se apaga para dar lugar a uma nova? Intenso e angustiante, plasticamente irretocável, Cisne Negro é um filme para ver e rever sempre com interesse. Um interesse instigante, vigoroso, obscuro e repleto de simbolismos.

Em Mãe! a proposta de Darren Aronofsky é mais radical. Assisti ao filme numa ensolarada Lisboa do mês de setembro, de céu sempre azul, um contraste brutal com o tema sombrio e desesperador desse conto fantástico sobre a alma feminina em meio ao caos da existência em que vivemos.

Se em Cisne Negro a garota é sufocada pela mãe e por sua própria personalidade, em Mãe! o mundo de Jennifer Lawrence, o mundo feminino, a casa, o marido, o filho que nascerá depois, é constantemente ameaçado por intromissões exteriores. E o marido não lhe dá a mínima. Mãe! também pode ser interpretado como uma fábula sobre devastação ambiental, onde a figura materna representa a natureza, a casa seria o planeta e os intrusos, a civilização destrutiva. Ou ainda como alegoria bíblica.

Motivado pela polêmica criada em torno do tom extremamente perturbador do filme, Martin Scorsese saiu em defesa de Mother!, através de um artigo no Hollywood Reporter: "É um filme que precisa ser explicado? E a experiência de assistir a Mãe!? Foi tão tátil, lindamente encenado - a câmera subjetiva e os ângulos reversos, sempre em movimento... o design de som, que vem ao espectador pelos cantos e o leva cada vez mais para as profundezas deste pesadelo... o desenrolar da história, que gradualmente se torna mais e mais perturbador conforme o filme avança. O terror, a comédia sombria, os elementos bíblicos, a fábula cautelar - eles estão todos lá, mas eles são elementos da experiência total, que engole os personagens e os espectadores junto deles. Somente um verdadeiro e apaixonado cineasta poderia ter feito esse longa.”

Jennifer Lawrence e Javier Bardem vivem num casarão retirado em constante reforma. Reforma que Jennifer pegou como tarefa para si, o que lhe proporciona grande satisfação. Afinal, é a casa do marido que ela está reconstruindo como prova indiscutível do seu amor. Bardem, o marido, é um escritor que não consegue escrever. Os primeiros intrusos que se insinuam no lar da jovem protagonista são o casal Ed Harris e Michelle Pfeiffer. O diretor não identifica seus personagens principais com nomes próprios, conferindo um caráter universal a sua narrativa.

Ed Harris aparece como um médico que precisa de ajuda e é recebido por Javier Bardem. Descobre-se depois que na verdade ele é um fã do escritor. É o suficiente para Bardem dedicar-lhe toda atenção, deixando de lado a esposa para quem já havíamos percebido sua indiferença. Convida Harris para pernoitar na casa, mesmo com o sentimento de desconforto que a jovem companheira externa. É o início de um processo de violação ao mundo de Jennifer Lawrence. Depois aparece Michelle Pfeiffer como esposa do convidado. Espaçosa, intrometida, ela prenuncia em quão preocupante a situação poderá se transformar. Se Harris rouba a atenção do marido, Pfeiffer adentra a privacidade de Jennifer com perguntas invasivas e atitudes sem constrangimento. Começamos a nos sentir incomodados, tal qual a garota anfitriã.

Javier Bardem guarda em seus aposentos, num pedestal, uma espécie de joia do tamanho da palma de uma mão, dedicando-lhe todo cuidado. Explica para Ed Harris que certa vez perdera tudo num incêndio e aquele objeto era tudo que lhe restara (no final do filme entenderemos o significado). Não permite que ninguém o toque. Quando o casal de hóspedes o quebra acidentalmente, o panorama na casa começa a ficar fora de controle, agravado com a chegada de dois rapazes adultos, filhos de Harris e Pfeiffer. Os irmãos, referência a Caim e Abel, brigam entre si por causa do testamento do pai.

Michelle Pfeiffer comenta com Jennifer Lawrence que os filhos só trazem desgosto. Você os ama intensamente mas eles não retribuem. Assim como Jennifer e o marido, relação já insinuada pela hóspede (“Look at you! Se ele não está o tempo todo em cima de você, alguma coisa está errada”). Ela percebe que a bela jovem realmente ama o companheiro, mas não há reciprocidade. Parece ser a sina da condição feminina, amar mas não ser amada.

Uma morte acontece e mais intrusos invadem a casa, ameaçando a vida íntima de Jennifer, seu lar e as reformas às quais se dedicou. A desordem se instaura sem pedir licença.

Então, após o incidente do velório, sobrevém um período de paz aparente. Voltam a ficar a sós em seu casarão. Jennifer e Bardem se desentendem (“Você não é capaz nem de me comer!”, ela grita) e em seguida reconciliam-se numa cena de sexo carregada de raiva e desejo represado. Passa-se um tempo e a jovem anuncia que está grávida. Uma vida havia se esvaído, mas outra está por nascer. Este milagre da vida, a geração de um novo ser, inspira o escritor a superar sua impotência e voltar a escrever. Bardem transforma-se, está exultante e cheio de energia.

Seu novo livro é um sucesso. Como consequência, a paz do lar está novamente ameaçada. Primeiro a imprensa, depois multidões de admiradores. Depois, ainda, hordas de fanáticos, todos estimulados pelo conteúdo do livro, o (re)nascimento da vida (como se fosse uma bíblia). Sempre os outros merecem mais atenção de Bardem. A esposa é sempre preterida. Seu trabalho, amigos, fãs, estranhos, narcisismo estão sempre em primeiro lugar.

A situação torna-se intolerável. Ela, grávida, sua casa se demolindo, o caos tomando conta do seu mundo. A angústia que sentia desde o começo do filme, agora é puro desespero. E é assim também que nos sentimos desde o início, incomodados, perturbados, e da metade em diante do filme, desesperados. E Darren Aronofsky não alivia. Apesar de alguns instantes de humor negro, sentimos o mesmo pavor que Jennifer Lawrence. Um pavor que cresce à medida que se aproxima o momento de ela dar à luz. Já não se reconhece mais o interior da casa das reformas e mistérios, transformou-se num campo de batalha. Estamos num pesadelo sem fim, nós e Jennifer.

Nesse cenário de caos, o caos que é a síntese da própria natureza da civilização, só se encontra um breve momento de paz quando a criança nasce. Um novo ser, um ser amparado pelo milagre da vida, que, como um predestinado, vítima inocente da ilusão, poderá conferir sentido a um mundo repleto de desordem e desespero. Poderá redimir aquele mundo que o gerou.

No entanto, a trégua dura pouco. Referências bíblicas são evocadas quando a criança é arrancada da guarda de sua mãe. Agora, a mulher, a mãe, se dá conta que o mundo que ela cultiva nunca terá paz, nunca será verdadeiramente seu, como não é o filho que nasceu, sacrificado pela fantasia da redenção. O caos que ordena a realidade, o mundo exterior (seu marido aliando-se a ele) está sempre invadindo seus recantos, sempre se impondo com violência, opressão e fanatismo. Sua casa, seu santuário, sangra como ela. E então, aquela criatura que era dócil, assustada, submissa reage com uma fúria que literalmente não deixará pedra sobre pedra. A fúria de quem foi impotente para defender sua cria. A fúria de quem se rebela contra os algozes com o peso das dores acumuladas em seu ventre e âmago. Para depois tudo continuar como sempre foi.

No clímax do filme, Jennifer Lawrence (também como voz do próprio sofrimento humano) confronta a alma feminina e a alma masculina, contestando Javier Bardem como homem e como o ser onipotente revelado ao final:

Você nunca me amou! Você ama o amor que dedico a você!