(“Nunca diga a alguém que ele não é livre porque ele vai matar para provar que é.”)

Há
alguns milhares de anos perdemos algo chamado inocência...desde então sentimos
medo dela.
1973.
Porto Alegre. Colégio Anchieta. Aula de Filosofia do Prof. João. Uma garotada
na faixa dos quinze anos é levada para o auditório do colégio para uma sessão
de cinema. Só que, para não aloprar com a gurizada, nos apresentaram um filme
editado, sem as sequências iniciais de sexo, drogas e rock'n’roll, indispensáveis
para se entender toda a estória. Me lembro, de qualquer jeito, que ficamos
muito impressionados. Aliás, aquelas aulas de filosofia sempre nos
impressionavam. Tudo era uma grande revelação. Consumismo, sistema,
massificação, alienação eram termos citados para nós pela primeira vez e
traziam uma grande carga de impacto. Assim como o filme incompleto que nos
apresentaram. Mesmo pirralhos, sem saber nada da vida, sentíamos que alguma
coisa forte e significativa estava acontecendo na tela e na vida real. O filme?
SEM DESTINO (Easy Rider), de 1969. Produzido por Peter Fonda. Dirigido por
Dennis Hopper. Roteiro de Fonda, Hopper e Terry Southern. Com Peter Fonda,
Dennis Hopper e Jack Nicholson. Clássico maior da contracultura. O legado de Fonda
e Hopper para o cinema e para a cultura contemporânea.
Uma
viagem transgressora pelo coração da América conservadora e ao mesmo tempo em
discussão com um sistema alternativo de valores. O mais emblemático dos road
movies. Peter Fonda e Dennis Hopper, depois com Jack Nicholson, a bordo de duas
Harley-Davidsons, embalados pela trilha sonora de Jimi Hendrix, Steppenwolf e
The Band, entre outros, singrando o asfalto e deparando-se com toda a sorte de
tipos. Um painel comovente e enérgico de uma época que questionava e batia de frente
com uma sociedade enraizada em seus valores putrefatos.
As
máquinas também são personagens principais. Em O Selvagem, com Marlon Brando,
as motos eram um símbolo de rebeldia. Em Easy Rider, além de rebeldia, são
principalmente um símbolo de liberdade.
Peter
Fonda livra-se do relógio e junto com Dennis Hopper caem na estrada.
Conseguiram dinheiro para sua aventura através de uma operação simples de venda
de droga. Fonda é Wyatt ou Capitão América, pelas cores da bandeira americana
na moto, jaqueta e capacete, também alusão ao personagem dos comics representativo do espírito
americano. Hopper é Billy. Wyatt é pensativo e Billy é a transgressão espontânea, inata.
São
dois cowboys num western sobre rodas, como sugere a paisagem do Monument
Valley, palco glorioso dos filmes de John Wayne e John Ford, e o encontro com
os primeiros personagens que cruzam seu caminho, no início da jornada até o
Mardi Gras, em New Orleans, e além: uma simpática família de fazendeiros, que
ao mesmo tempo em que consertam a ferradura de um cavalo, os motoqueiros estão reparando
a roda de uma das motos. Peter Fonda comenta com o chefe da família, na mesa do
almoço: "Sua fazenda é legal. Nem todos
podem viver da terra. Você trabalha no que é seu, quando quer. Deveria se
orgulhar."
Depois,
seguindo viagem, dão carona a um hippie. Óculos de aro fino, bandana na cabeça,
bigode comprido, roupas características. Intelectual hippie. À noite, Billy
pergunta de onde ele é. O cara responde: "De
uma cidade. Não importa qual, são todas iguais. Por isso estou aqui. Longe
daquela cidade, e é onde quero estar." Acabam numa comunidade alternativa
onde as pessoas plantam para comer. Quase uma aldeia indígena. Curtem a
comunidade, as garotas, mas ainda são estranhos. "Este poderia ser o lugar certo, mas seu tempo está acabando", fala
para Wyatt o amigo hippie, líder do grupo, praticamente um sacerdote da tribo.
Que ainda lhe entrega um presente, um pequeno pacote: "Quando estiver no lugar certo, com as pessoas certas, repartam isto".
A
próxima parada dos cowboys, forasteiros que provocam a desconfiança dos
nativos, é a cadeia de uma pequena cidade, onde são presos por “desfilar sem
permissão” (estavam apenas seguindo a apresentação da bandinha da cidade) e
onde conhecem George Hanson (Jack Nicholson), preso contumaz por embriaguez.
Advogado que já trabalhou com a União Americana das Liberdades Civis e que
simpatiza com a dupla. Consegue-lhes a liberdade por uma pequena fiança e
resolve acompanhá-los de carona até New Orleans, usando um ridículo capacete de
futebol americano.
Numa
das primeiras cenas do filme, a dupla de motoqueiros não conseguiu pousada num
motel de beira de estrada porque o gerente assustou-se com a aparência deles,
esses cabeludos perigosos. Desde então passaram a dormir ao relento, no mato,
em volta de uma pequena fogueira, como verdadeiros cowboys. Os diálogos que
travam nessas noites, entre uma marijuana e outra, são um dos pontos altos do
filme. Principalmente entre George e Billy. Como quando, “chapados”, conversam
sobre OVNIs.
George
discursa: "Eles são pessoas como nós, do
nosso sistema solar. Só que a sociedade deles é mais evoluída. Não tem guerras,
não tem um sistema monetário nem líderes, porque cada homem é um líder. Com a
tecnologia que têm, eles podem se alimentar, se vestir, morar e se transportar
com igualdade e sem esforço."
Ele
continua, após Billy objetar como quem não está entendendo nada: "Nossos líderes decidiram acobertar as
informações que seriam um choque tremendo para nosso sistema antiquado. Os
venusianos encontram gente de todas as classes sociais e fazem o papel de
conselheiros. Pela primeira vez, o homem terá um controle divino sobre o seu
próprio destino. Ele terá a oportunidade de transcender e evoluir com alguma
igualdade para todos." George para de falar, sorrindo, olhar vago para
Wyatt. O baseado apagado e a cara de quem acaba de aterrissar do espaço
sideral.
Em
outro momento, nessas conversas iluminadas por uma fogueira, George, mais
sério, explica certas coisas para Billy. Este se queixa das hostilidades, pois
recém tinham sido praticamente corridos de uma lanchonete da cidadezinha por
onde passavam, embora tenham atraído a atenção das meninas:
-
Todos viraram covardes, é isso. Nós nem pudemos ficar num hotel de segunda,
aliás, um motel de segunda! O cara achou que a gente fosse matá-lo. Eles têm
medo.
-
Não têm medo de vocês, mas do que vocês representam – responde George.
-
Cara, pra eles só representamos alguém que devia cortar o cabelo.
-
Não. Para eles vocês representam a liberdade.
-
E qual o problema? Liberdade é legal!
-
É verdade, é legal mesmo, mas falar dela e vivê-la são duas coisas diferentes.
É difícil ser livre quando se é comprado e vendido no mercado.
George
continua:
-
Mas nunca diga a alguém que ele não é livre porque ele vai tratar de matar e
aleijar para provar que é. Eles falam sem parar de liberdade individual mas,
quando veem um indivíduo livre, ficam com medo.
-
Eu não boto ninguém pra correr de medo.
-
Não. Você é que corre perigo.
George
será a primeira vítima do reacionarismo e do medo.
Chegam
a New Orleans apenas Wyatt e Billy. Por insistência deste último dirigem-se ao
bordel indicado por George, como uma deferência ao amigo. Fazem amizade com
duas garotas, Karen e Mary, e misturam-se os quatro com a população no Mardi Gras.
Divertem-se
na festa da cidade e depois vão passear no cemitério. Lá, num cenário gótico,
entre túmulos e mausoléus, como se fosse uma cerimônia religiosa, Wyatt reparte
o presente que havia ganho do hippie. “...no
lugar certo, com as pessoas certas...” Tomam as pílulas e embarcam numa
“viagem” mística, catártica, entre orações, lamentos, visões fugazes e sexo. Como tragados por um redemoinho de
sensações que transcende os espíritos, corpos e ancestrais.
É
nessa experiência que Wyatt parece ter uma revelação enigmática, de sentido
ambíguo, contraditório (sobre eles ou sua geração), que dividirá à noite com um
surpreso Billy, que se vangloriava do dinheiro que tinham conseguido como se
isso significasse ser livre, os dois conversando ao relento: “You know, Billy? Nós estragamos tudo.”
Quando
a jornada dos dois parceiros é interrompida bruscamente, Billy agonizante
ameaçando os agressores fugitivos que em seguida dão meia-volta (“Vou pegá-los! Estamos prontos!” como se
essas últimas palavras orgulhosas, ele estirado no chão, representassem os
novos ventos), a emblemática cena da moto de Wyatt, símbolo da liberdade e da
bandeira americana, atingida por um tiro de espingarda e em chamas, é o desfecho
violento de um grande filme.
Mataram
a liberdade. O Sistema versus a Contracultura.
Mas
a Contracultura sobreviveu.
Muitas
conquistas daqueles anos 60 e 70 foram incorporadas ao nosso comportamento. Até
mesmo a aula de filosofia que citei no início da postagem estava dentro desse
contexto. Não se pode dizer que o movimento tenha sido derrotado. Trouxe
contribuições que permanecem até hoje, inclusive à custa de sacrifícios, como
testemunha a cena final de Easy Rider. Mas aqueles sonhos de vida em uma
sociedade livre, plena e solidária continuam muito distantes. A jornada sem
destino dos cavaleiros do asfalto ainda tem um longo caminho pela frente.