sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

EASY RIDER

(“Nunca diga a alguém que ele não é livre porque ele vai matar para provar que é.”)

                                         



Há alguns milhares de anos perdemos algo chamado inocência...desde então sentimos medo dela.

1973. Porto Alegre. Colégio Anchieta. Aula de Filosofia do Prof. João. Uma garotada na faixa dos quinze anos é levada para o auditório do colégio para uma sessão de cinema. Só que, para não aloprar com a gurizada, nos apresentaram um filme editado, sem as sequências iniciais de sexo, drogas e rock'n’roll, indispensáveis para se entender toda a estória. Me lembro, de qualquer jeito, que ficamos muito impressionados. Aliás, aquelas aulas de filosofia sempre nos impressionavam. Tudo era uma grande revelação. Consumismo, sistema, massificação, alienação eram termos citados para nós pela primeira vez e traziam uma grande carga de impacto. Assim como o filme incompleto que nos apresentaram. Mesmo pirralhos, sem saber nada da vida, sentíamos que alguma coisa forte e significativa estava acontecendo na tela e na vida real. O filme?

SEM DESTINO (Easy Rider), de 1969. Produzido por Peter Fonda. Dirigido por Dennis Hopper. Roteiro de Fonda, Hopper e Terry Southern. Com Peter Fonda, Dennis Hopper e Jack Nicholson. Clássico maior da contracultura. O legado de Fonda e Hopper para o cinema e para a cultura contemporânea.

Uma viagem transgressora pelo coração da América conservadora e ao mesmo tempo em discussão com um sistema alternativo de valores. O mais emblemático dos road movies. Peter Fonda e Dennis Hopper, depois com Jack Nicholson, a bordo de duas Harley-Davidsons, embalados pela trilha sonora de Jimi Hendrix, Steppenwolf e The Band, entre outros, singrando o asfalto e deparando-se com toda a sorte de tipos. Um painel comovente e enérgico de uma época que questionava e batia de frente com uma sociedade enraizada em seus valores putrefatos.

As máquinas também são personagens principais. Em O Selvagem, com Marlon Brando, as motos eram um símbolo de rebeldia. Em Easy Rider, além de rebeldia, são principalmente um símbolo de liberdade.

Peter Fonda livra-se do relógio e junto com Dennis Hopper caem na estrada. Conseguiram dinheiro para sua aventura através de uma operação simples de venda de droga. Fonda é Wyatt ou Capitão América, pelas cores da bandeira americana na moto, jaqueta e capacete, também alusão ao personagem dos comics representativo do espírito americano. Hopper é Billy. Wyatt é pensativo e Billy é a transgressão espontânea, inata.

São dois cowboys num western sobre rodas, como sugere a paisagem do Monument Valley, palco glorioso dos filmes de John Wayne e John Ford, e o encontro com os primeiros personagens que cruzam seu caminho, no início da jornada até o Mardi Gras, em New Orleans, e além: uma simpática família de fazendeiros, que ao mesmo tempo em que consertam a ferradura de um cavalo, os motoqueiros estão reparando a roda de uma das motos. Peter Fonda comenta com o chefe da família, na mesa do almoço: "Sua fazenda é legal. Nem todos podem viver da terra. Você trabalha no que é seu, quando quer. Deveria se orgulhar."

Depois, seguindo viagem, dão carona a um hippie. Óculos de aro fino, bandana na cabeça, bigode comprido, roupas características. Intelectual hippie. À noite, Billy pergunta de onde ele é. O cara responde: "De uma cidade. Não importa qual, são todas iguais. Por isso estou aqui. Longe daquela cidade, e é onde quero estar." Acabam numa comunidade alternativa onde as pessoas plantam para comer. Quase uma aldeia indígena. Curtem a comunidade, as garotas, mas ainda são estranhos. "Este poderia ser o lugar certo, mas seu tempo está acabando", fala para Wyatt o amigo hippie, líder do grupo, praticamente um sacerdote da tribo. Que ainda lhe entrega um presente, um pequeno pacote: "Quando estiver no lugar certo, com as pessoas certas, repartam isto".

A próxima parada dos cowboys, forasteiros que provocam a desconfiança dos nativos, é a cadeia de uma pequena cidade, onde são presos por “desfilar sem permissão” (estavam apenas seguindo a apresentação da bandinha da cidade) e onde conhecem George Hanson (Jack Nicholson), preso contumaz por embriaguez. Advogado que já trabalhou com a União Americana das Liberdades Civis e que simpatiza com a dupla. Consegue-lhes a liberdade por uma pequena fiança e resolve acompanhá-los de carona até New Orleans, usando um ridículo capacete de futebol americano.

Numa das primeiras cenas do filme, a dupla de motoqueiros não conseguiu pousada num motel de beira de estrada porque o gerente assustou-se com a aparência deles, esses cabeludos perigosos. Desde então passaram a dormir ao relento, no mato, em volta de uma pequena fogueira, como verdadeiros cowboys. Os diálogos que travam nessas noites, entre uma marijuana e outra, são um dos pontos altos do filme. Principalmente entre George e Billy. Como quando, “chapados”, conversam sobre OVNIs.

George discursa: "Eles são pessoas como nós, do nosso sistema solar. Só que a sociedade deles é mais evoluída. Não tem guerras, não tem um sistema monetário nem líderes, porque cada homem é um líder. Com a tecnologia que têm, eles podem se alimentar, se vestir, morar e se transportar com igualdade e sem esforço."

Ele continua, após Billy objetar como quem não está entendendo nada: "Nossos líderes decidiram acobertar as informações que seriam um choque tremendo para nosso sistema antiquado. Os venusianos encontram gente de todas as classes sociais e fazem o papel de conselheiros. Pela primeira vez, o homem terá um controle divino sobre o seu próprio destino. Ele terá a oportunidade de transcender e evoluir com alguma igualdade para todos." George para de falar, sorrindo, olhar vago para Wyatt. O baseado apagado e a cara de quem acaba de aterrissar do espaço sideral.

Em outro momento, nessas conversas iluminadas por uma fogueira, George, mais sério, explica certas coisas para Billy. Este se queixa das hostilidades, pois recém tinham sido praticamente corridos de uma lanchonete da cidadezinha por onde passavam, embora tenham atraído a atenção das meninas:

- Todos viraram covardes, é isso. Nós nem pudemos ficar num hotel de segunda, aliás, um motel de segunda! O cara achou que a gente fosse matá-lo. Eles têm medo.
- Não têm medo de vocês, mas do que vocês representam – responde George.
- Cara, pra eles só representamos alguém que devia cortar o cabelo.
- Não. Para eles vocês representam a liberdade.
- E qual o problema? Liberdade é legal!
- É verdade, é legal mesmo, mas falar dela e vivê-la são duas coisas diferentes. É difícil ser livre quando se é comprado e vendido no mercado.

George continua:
- Mas nunca diga a alguém que ele não é livre porque ele vai tratar de matar e aleijar para provar que é. Eles falam sem parar de liberdade individual mas, quando veem um indivíduo livre, ficam com medo.
- Eu não boto ninguém pra correr de medo.
- Não. Você é que corre perigo. 

George será a primeira vítima do reacionarismo e do medo.

Chegam a New Orleans apenas Wyatt e Billy. Por insistência deste último dirigem-se ao bordel indicado por George, como uma deferência ao amigo. Fazem amizade com duas garotas, Karen e Mary, e misturam-se os quatro com a população no Mardi Gras.

Divertem-se na festa da cidade e depois vão passear no cemitério. Lá, num cenário gótico, entre túmulos e mausoléus, como se fosse uma cerimônia religiosa, Wyatt reparte o presente que havia ganho do hippie. “...no lugar certo, com as pessoas certas...” Tomam as pílulas e embarcam numa “viagem” mística, catártica, entre orações, lamentos, visões fugazes e sexo. Como tragados por um redemoinho de sensações que transcende os espíritos, corpos e ancestrais.

É nessa experiência que Wyatt parece ter uma revelação enigmática, de sentido ambíguo, contraditório (sobre eles ou sua geração), que dividirá à noite com um surpreso Billy, que se vangloriava do dinheiro que tinham conseguido como se isso significasse ser livre, os dois conversando ao relento: “You know, Billy? Nós estragamos tudo.”  

Quando a jornada dos dois parceiros é interrompida bruscamente, Billy agonizante ameaçando os agressores fugitivos que em seguida dão meia-volta (“Vou pegá-los! Estamos prontos!” como se essas últimas palavras orgulhosas, ele estirado no chão, representassem os novos ventos), a emblemática cena da moto de Wyatt, símbolo da liberdade e da bandeira americana, atingida por um tiro de espingarda e em chamas, é o desfecho violento de um grande filme.

Mataram a liberdade. O Sistema versus a Contracultura.

Mas a Contracultura sobreviveu.

Muitas conquistas daqueles anos 60 e 70 foram incorporadas ao nosso comportamento. Até mesmo a aula de filosofia que citei no início da postagem estava dentro desse contexto. Não se pode dizer que o movimento tenha sido derrotado. Trouxe contribuições que permanecem até hoje, inclusive à custa de sacrifícios, como testemunha a cena final de Easy Rider. Mas aqueles sonhos de vida em uma sociedade livre, plena e solidária continuam muito distantes. A jornada sem destino dos cavaleiros do asfalto ainda tem um longo caminho pela frente.







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