quinta-feira, 21 de abril de 2016

INSTINTO SELVAGEM

(“Você sabe tudo sobre impulso homicida. Não sabe, shooter?”)




Considero INSTINTO SELVAGEM (Basic Instinct), de 1992, o melhor filme noir de todos os tempos. Minha esposa, fã do filme, compartilha da mesma opinião. Bom, se não é o melhor pelo menos podemos colocá-lo na galeria de  obras-primas deste gênero, desde O Falcão Maltês até Pacto de Sangue, Laura, Amar Foi Minha Ruína, Vertigo, Corpos Ardentes e tantos outros.

O termo “noir” surgiu na crítica francesa, numa alusão a uma coleção de livros de histórias criminais, impressos em capas pretas, para denominar um estilo de filmes policiais, em preto-e-branco, produzidos por Hollywood nos anos quarenta. O gênero estendeu-se pelas décadas seguintes e quase sempre seus principais elementos são a fotografia em contraste claro-escuro, gerando sombras que representam a própria psique dos personagens, cenários noturnos, submundo, desesperança, valores morais obscuros, mulheres fatais, um investigador cínico e desiludido que sempre se apaixona pela mulher errada, diálogos ácidos e de duplo sentido, crimes como assassinato e roubo, história intrincada ou mesmo incompreensível.

O diretor holandês Paul Verhoeven, autor de sucessos como Robocop, Conquista Sangrenta, O Vingador do Futuro, A Espiã, etc., manipulou esses elementos criando um filme irresistível, cheio de clima, mistério e sedução, além de transformar Sharon Stone em estrela e adicionar mais um sucesso à carreira de Michael Douglas.

Instinto Selvagem é inspirado livremente no filme espanhol O Matador, de Pedro Almodóvar.

Sharon Stone é Catherine Tramell, uma loira hitchcoquiana no auge de sua beleza, a femme fatale protagonista da cena mais ousada dos filmes noir. Uma cruzada de pernas espetacular que traumatizou os policiais presentes no interrogatório e deve ter derrubado vários saquinhos de pipoca nas sessões de cinema.

Michael Douglas é o detetive Nick Curran, aquele cara que só entra em roubada, um loser do tipo que sempre simpatizamos neste gênero de filme.

É pela relação ambígua entre ambos, antagonismo e desejo irrefreável, que a trama se desenvolve em seus vários desenlaces. Parece que o tempo todo tentamos dizer para Michael “Cai fora. Você vai se fuder”, mas como resistir à beleza de Sharon? Na verdade, queremos que ele continue atrás da gostosa. Assim também funcionava a cabeça de Nick Curran.

Na abertura do filme, ao som da elogiada trilha sonora, quatro nomes de peso responsáveis pela produção aparecem entre os créditos: Jerry Goldsmith, compositor da trilha sonora; Jan de Bont, responsável pela bela fotografia, que viria a ser diretor de sucessos como Twister e Velocidade Máxima; Joe Eszterhas, autor do roteiro e roteirista de Flashdance e Jade; e o próprio diretor Paul Verhoeven.

Cabe destacar a presença no elenco da veterana Dorothy Malone, atriz de clássicos inesquecíveis como À Beira do Abismo (outro grande filme noir), Palavras ao Vento e O Último Pôr do Sol. Ela faz o papel de Hazel Dobkins, uma das amigas de Catherine Tramell. Também no cast a bela Jeanne Tripplehorn, de Waterworld, como a Dr. Beth Garner.

Após a apresentação dos créditos, uma cena de sexo ardente é seguida pela violência de um assassinato. A protagonista é uma loira hot, mas não conseguimos enxergar seu rosto. Catherine Tramell, namorada do roqueiro assassinado, passa a ser a principal suspeita.

Quando o policial Nick Curran e seu parceiro Gus encontram-se pela primeira vez com Catherine, no deck de sua casa de praia, com uma vista paradisíaca para o mar, sabemos que a tela vai pegar fogo, sentimos um clima tal qual notas de jazz, perigosas e sedutoras, preenchendo toda a atmosfera do filme. Sabemos que ninguém será páreo para aquela mulher, nem mesmo o detector de mentiras: “Não hesita, sem variação na pressão ou na pulsação. Ou ela está dizendo a verdade ou nunca vi alguém  igual”, relata o técnico do polígrafo para seus colegas, após o interrogatório da beldade.

Catherine Tramell é psicóloga e escritora. Escreve livros de ficção e faz sua pesquisa entre pessoas cujo passado revelou um instinto assassino e que passam a fazer parte de seus relacionamentos pessoais. No seu entender, Nick Curran se enquadra nesse perfil. Afinal, ele havia sofrido um processo dentro da própria polícia, quando, num tiroteio com criminosos, matara acidentalmente dois turistas. Catherine parece saber tudo sobre a vida de Nick. Quando o policial reaparece em sua casa, inclusive lhe revela que se inspira nele para o personagem de seu próximo livro.

- Então, o que quer perguntar para mim? – prontifica-se Nick com a pesquisa da escritora, enquanto esta prepara um drink.
- O que se sente ao matar alguém? – pergunta Catherine.
- Me conte você – tenta se recompor o policial.
- Eu não sei, mas você sabe.
- Foi um acidente. Eles entraram na linha de tiro.

No desenrolar do jogo que a anfitriã conduz, o detetive lhe pergunta sobre Hazel Dobkins:
- Hazel é minha amiga – responde Catherine.
- Sua amiga acabou com toda a família.
- Sim, ela me ajudou a entender o impulso homicida.
- Pensei que aprendesse isso na escola.
- Só na teoria. Mas você sabe tudo sobre impulso homicida. Não sabe, shooter? Não em teoria, mas na prática. O que aconteceu? Foi tragado por isso? Gostou muito?
- Não sei do que está falando.

Neste momento, o rosto de Catherine está quase encostado no de Nick e sua voz é um convite ao policial, completamente sem ação, a se deixar perder nas próprias confidências:
- Fale-me da coca, Nick. No dia em que acertou os dois turistas. Quanta coca tinha cheirado? Vamos, você pode me contar.
- Não cheirei.
- Sim, cheirou sim. Eles nunca checaram isso, não foi? Mas a Assuntos Internos sabia. Sua esposa também sabia, não é mesmo? Ela sabia o que estava acontecendo. Nicky chegou perto demais do fogo. Nicky gostou daquilo. Foi por isso que ela se matou.

O policial empurra a loira, que continua lhe fitando com um sorriso irônico no canto dos belos lábios. A amiga Roxy chega, outra loira sensual, e enquanto Catherine a envolve em seus braços, o detetive dirige-se irritado para a saída. “Você vai dar um personagem formidável, Nick”, diverte-se a escritora com a reação do cara.

Ao longo de toda a trama policial, desde o início, a teia que Catherine tece sobre Nick e da qual ele não consegue escapar é o âmago do filme. “Ela sabe tudo a meu respeito. Ela está atrás de mim, Gus”, revela a seu parceiro sem conseguir uma explicação. A sensação de perigo parece impelir Nick para as cenas de sexo com a bela suspeita. Qual seria a verdadeira intenção de Catherine Tramell por trás daquela aura de desejo e ameaça? Até a última cena, ou mesmo depois, esta pergunta parece nunca ter resposta.