(“É o máximo, só que vicia demais.”)
A REDE SOCIAL (The Social Network), de 2010, produzido por Kevin Spacey e dirigido por
David Fincher, grande talento do cinema americano contemporâneo, que aborda a
criação do Facebook, além de um
grande filme é um testemunho sobre a genialidade e perversidade do espírito
humano. E conforme o próprio diretor, a questão principal “é a perda da inocência para todos os envolvidos”. A gênese da mais
popular rede social e a disputa que se trava entre Mark Zuckerberg e o
brasileiro Eduardo Saverin, sócios e depois desafetos, e com demais protagonistas, num
processo que inicia como uma brilhante brincadeira juvenil até se transformar
num sucesso monumental, envolvendo ambição, poder, dinheiro, prestígio,
vaidades, amizade e traição, são a base de um novo clássico da Hollywood do
século XXI.
Tudo no filme tem muita classe: a direção, o roteiro (Aaron Sorkin), a
fotografia (elegante e tradicional, combinando com o ambiente de Harvard), a
música, efeitos especiais, montagem e o talento dos jovens atores (um time de
futuros astros), principalmente a química entre Jesse Eisenberg e Andrew
Garfield.
Começa com uma cena excelente, uma discussão de bar entre Eisenberg
(como Mark Zuckerberg) e a ótima Rooney Mara (como a namorada Erica).
Zuckerberg é apresentado como o estereótipo do nerd, o cara inteligente. Fala
rápida, raciocínio turbinado, mas duramente questionado pela garota, que lhe dá
o fora quando consegue falar: “Ficar com
você é como namorar uma StairMaster”. “Okay, você ainda vai ser um gênio
bem-sucedido da computação. Mas vai passar a vida pensando que as garotas não
gostam de você por ser um nerd. E eu quero que saiba, do fundo do meu coração,
que não será verdade. Isso acontecerá porque você é um babaca.”
O prólogo a mil apresenta a narrativa sempre envolvente e empolgante que
durante todo o filme acompanha a epopeia dos garotos da informática, a paixão de
Zuckerberg e turma pela sua criação, o Facebook, e o jogo de interesses e
idiossincrasias que envolve vários personagens na disputa pelos direitos e
benesses de uma concepção que modificou o comportamento de uma geração (ou de
várias gerações).
A última cena retoma referências à sequência de abertura. Ao final do que seria a última reunião de mediação,
Zuckerberg fica a sós com a advogada Marylin (a bela Rashida Jones), que
acompanhou todo o processo jurídico e ouve o empresário da informática desabafar
em tom de defesa:
- Eu não sou um vilão.
- Eu sei disso – responde
Marylin, com o entendimento privilegiado de quem observa de fora – Em um testemunho
emocional, 85% devem-se ao exagero.
- E os outros 15%?
- Perjúrio. Todo mito de
criação tem um vilão.
Ao sair, ela complementa: “Você
não é um babaca, Mark. Apenas faz de tudo para ser”.
O processo de criação do Facebook foi genial, quiçá mitológico. A grande
sacada de Zuckerberg foi perceber que “buscamos
os amigos na Internet”. O site assumiria “o conceito de nunca estar pronto” e, principalmente, “seria exclusivo”. Como reconhece numa
audiência Eduardo Saverin (Andrew Garfield), que litiga por uma participação
justa nas ações milionárias: “Era uma
grande ideia. Os usuários forneceriam suas fotos e dados e convidariam ou não
os amigos para visitá-los. Num mundo regido pela estratificação social, isso
seria o máximo”.
Os gêmeos Winklevoos (Armie
Hammer) também recorreram à justiça alegando a autoria da ideia de
criar uma rede social exclusiva. Embora o filme seja a dramatização de uma
história real, era interessante como os irmãos, remadores, atletas olímpicos,
representavam um contraste com a inteligência de Zuckerberg, que sempre levava
vantagem. Esse antagonismo entre remadores e caras da computação já havia
aparecido no diálogo que abre o filme.
Uma ótima cena,
bem-humorada, mostra os nerds da informática como se fossem literalmente uma
outra raça, com um modo de raciocínio bem diferente do nosso, “pessoas
normais”. Quando Zuckerberg, sócios e estagiários mudam-se para a Califórnia,
para dar um up no processo de desenvolvimento do Facebook, quase destroem a
casa onde se estabeleceram, com brincadeiras completamente piradas, e isso
atrai a visita de Sean Parker (Justin Timberlake) e uma bela namorada. Criador
do Napster, Sean já conhecia Mark e Eduardo e se “intromete” no Facebook.
Zuckerberg os recepciona e convida para entrar. Abre a geladeira e joga uma
garrafa de cerveja para Sean que se vira e a agarra. Repete o gesto na direção
da garota mas a garrafa passa reto e se estilhaça na parede. Desculpa-se e
atira outra cerveja. A menina, “pessoa normal”, não consegue acompanhar aquele
raciocínio em alta voltagem e cacos voam novamente para todos os lados.
Sean Parker, a presença da
astúcia na trama, mesmo sendo antipático para o espectador (simpatizamos com
Eduardo, não com Sean) deu sua contribuição ao desenvolvimento do Facebook.
Numa festa, entusiasmado, comenta que o site é “a verdadeira digitalização da vida real. Vivemos em fazendas, depois
em cidades, e agora vamos viver na Internet!”
O primeiro contato dele com
a criação dos garotos prodígios foi no quarto de uma garota com quem transou,
através do computador aberto na página dela da rede social. Chama Amy (Dakota
Johnson) e ela responde à pergunta sobre aquele website: “The Facebook? Temos em Stanford, tipo, há 2 semanas. É o máximo, só
que vicia demais”.
Um acerto espetacular de
Zuckerberg e parceiros. O Facebook rendeu-lhes fortunas e um enorme sucesso
entre pessoas de todas as idades, no mundo todo, um “vício” que poucos
conseguiram evitar.
Da minha parte, confesso que
acho muito chato olhar as fotos dos outros com a filharada, pets, programas, viagens.
Um certo exibicionismo social. Mas se as pessoas se divertem com essas coisas
inocentes (principalmente quem posta as fotos), tudo bem. Essa dança festiva de
clics, dígitos, likes, imagens, selfies, nomes, emoticons, reconheço que é uma
curtição para quem gosta. Reencontrar amigos, restabelecer amizades quando
pertinentes, mesmo que virtualmente, é outro ponto bacana. Conteúdos
interessantes (ou não) também são compartilhados nas redes. Cada usuário
reproduz seu nível de cultura, educação e informação.
Mas existe um lado nem tão singelo
assim que se revelou mais tarde, algo que a turma de Zuckerberg jamais imaginou.
Na verdade, perverso. “A perda da inocência”, referência de David Fincher aplicada
ao filme mas sendo transposta para a realidade atual. Meias verdades, quase
verdades, até verdades ou mentiras deslavadas, boatos infundados sem necessitar
comprovação são disseminados pelas redes, com objetivos políticos e
econômicos, e transformam-se em Verdades Absolutas. O que estão chamando de pós-verdade. Mobilizações sociais,
golpes políticos, opinião pública manipulada, votações influenciadas (a eleição
de Trump é um exemplo) são a consequência direta dessa arma poderosa que as
estratégias de dominação ideológica lançam mão, como um monstro que espalha
seus tentáculos empunhando bisturis em incisões afiadas nos cérebros das
vítimas. Ninguém fica realmente imune ao seu poder. Sempre que a criatividade
humana inventa alguma coisa interessante, o Sistema dela se apropria e a
utiliza conforme seus interesses, geralmente bem-sucedidos.
Sob outro ângulo, Zygmunt
Bauman, brilhante filósofo polonês, recentemente falecido, em entrevista muito perspicaz
ao jornal El País, alertou que as redes sociais podem ser uma armadilha:
“A questão da identidade foi transformada de algo
preestabelecido em uma tarefa: você tem que criar a sua própria comunidade. Mas
não se cria uma comunidade, você tem uma ou não; o que as redes sociais podem
gerar é um substituto. A diferença entre a comunidade e a rede é que você
pertence à comunidade, mas a rede pertence a você. É possível adicionar e
deletar amigos, e controlar as pessoas com quem você se relaciona. Isso faz com
que os indivíduos se sintam um pouco melhor, porque a solidão é a grande ameaça
nesses tempos individualistas. Mas, nas redes, é tão fácil adicionar e deletar
amigos que as habilidades sociais não são necessárias. Elas são desenvolvidas
na rua, ou no trabalho, ao encontrar gente com quem se precisa ter uma
interação razoável. Aí você tem que enfrentar as dificuldades, se envolver em
um diálogo. O papa Francisco, que é um grande homem, ao ser eleito, deu sua
primeira entrevista a Eugenio Scalfari, um jornalista italiano que é um ateu
autoproclamado. Foi um sinal: o diálogo real não é falar com gente que pensa
igual a você. As redes sociais não ensinam a dialogar porque é muito fácil
evitar a controvérsia… Muita gente as usa não para unir, não para ampliar seus
horizontes, mas ao contrário, para se fechar no que eu chamo de zonas de
conforto, onde o único som que escutam é o eco de suas próprias vozes, onde o
único que veem são os reflexos de suas próprias caras. As redes são muito
úteis, oferecem serviços muito prazerosos, mas são uma armadilha.”
Numa sociedade cada vez mais
individualista, as redes sociais, a par de seu lado lúdico, sujeitas à
contradição entre a solidão real e a comunicação virtual - inocente,
interessante ou cínica - reproduzem esse comportamento, mas possuem potencial
para ajudar na construção de uma sociedade mais solidária. Depende de nós.