sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

A REDE SOCIAL

(“É o máximo, só que vicia demais.”)




A REDE SOCIAL (The Social Network), de 2010, produzido por Kevin Spacey e dirigido por David Fincher, grande talento do cinema americano contemporâneo, que aborda a criação do Facebook, além de um grande filme é um testemunho sobre a genialidade e perversidade do espírito humano. E conforme o próprio diretor, a questão principal “é a perda da inocência para todos os envolvidos”. A gênese da mais popular rede social e a disputa que se trava entre Mark Zuckerberg e o brasileiro Eduardo Saverin, sócios e depois desafetos, e com demais protagonistas, num processo que inicia como uma brilhante brincadeira juvenil até se transformar num sucesso monumental, envolvendo ambição, poder, dinheiro, prestígio, vaidades, amizade e traição, são a base de um novo clássico da Hollywood do século XXI.

Tudo no filme tem muita classe: a direção, o roteiro (Aaron Sorkin), a fotografia (elegante e tradicional, combinando com o ambiente de Harvard), a música, efeitos especiais, montagem e o talento dos jovens atores (um time de futuros astros), principalmente a química entre Jesse Eisenberg e Andrew Garfield.  

Começa com uma cena excelente, uma discussão de bar entre Eisenberg (como Mark Zuckerberg) e a ótima Rooney Mara (como a namorada Erica). Zuckerberg é apresentado como o estereótipo do nerd, o cara inteligente. Fala rápida, raciocínio turbinado, mas duramente questionado pela garota, que lhe dá o fora quando consegue falar: “Ficar com você é como namorar uma StairMaster”. “Okay, você ainda vai ser um gênio bem-sucedido da computação. Mas vai passar a vida pensando que as garotas não gostam de você por ser um nerd. E eu quero que saiba, do fundo do meu coração, que não será verdade. Isso acontecerá porque você é um babaca.”

O prólogo a mil apresenta a narrativa sempre envolvente e empolgante que durante todo o filme acompanha a epopeia dos garotos da informática, a paixão de Zuckerberg e turma pela sua criação, o Facebook, e o jogo de interesses e idiossincrasias que envolve vários personagens na disputa pelos direitos e benesses de uma concepção que modificou o comportamento de uma geração (ou de várias gerações).

A última cena retoma referências à sequência de abertura. Ao final do que seria a última reunião de mediação, Zuckerberg fica a sós com a advogada Marylin (a bela Rashida Jones), que acompanhou todo o processo jurídico e ouve o empresário da informática desabafar em tom de defesa:
- Eu não sou um vilão.
- Eu sei disso – responde Marylin, com o entendimento privilegiado de quem observa de fora – Em um testemunho emocional, 85% devem-se ao exagero.
- E os outros 15%?
- Perjúrio. Todo mito de criação tem um vilão.
Ao sair, ela complementa: “Você não é um babaca, Mark. Apenas faz de tudo para ser”.

O processo de criação do Facebook foi genial, quiçá mitológico. A grande sacada de Zuckerberg foi perceber que “buscamos os amigos na Internet”. O site assumiria “o conceito de nunca estar pronto” e, principalmente, “seria exclusivo”. Como reconhece numa audiência Eduardo Saverin (Andrew Garfield), que litiga por uma participação justa nas ações milionárias: “Era uma grande ideia. Os usuários forneceriam suas fotos e dados e convidariam ou não os amigos para visitá-los. Num mundo regido pela estratificação social, isso seria o máximo”.

Os gêmeos Winklevoos (Armie Hammer) também recorreram à justiça alegando a autoria da ideia de criar uma rede social exclusiva. Embora o filme seja a dramatização de uma história real, era interessante como os irmãos, remadores, atletas olímpicos, representavam um contraste com a inteligência de Zuckerberg, que sempre levava vantagem. Esse antagonismo entre remadores e caras da computação já havia aparecido no diálogo que abre o filme.

Uma ótima cena, bem-humorada, mostra os nerds da informática como se fossem literalmente uma outra raça, com um modo de raciocínio bem diferente do nosso, “pessoas normais”. Quando Zuckerberg, sócios e estagiários mudam-se para a Califórnia, para dar um up no processo de desenvolvimento do Facebook, quase destroem a casa onde se estabeleceram, com brincadeiras completamente piradas, e isso atrai a visita de Sean Parker (Justin Timberlake) e uma bela namorada. Criador do Napster, Sean já conhecia Mark e Eduardo e se “intromete” no Facebook. Zuckerberg os recepciona e convida para entrar. Abre a geladeira e joga uma garrafa de cerveja para Sean que se vira e a agarra. Repete o gesto na direção da garota mas a garrafa passa reto e se estilhaça na parede. Desculpa-se e atira outra cerveja. A menina, “pessoa normal”, não consegue acompanhar aquele raciocínio em alta voltagem e cacos voam novamente para todos os lados.

Sean Parker, a presença da astúcia na trama, mesmo sendo antipático para o espectador (simpatizamos com Eduardo, não com Sean) deu sua contribuição ao desenvolvimento do Facebook. Numa festa, entusiasmado, comenta que o site é “a verdadeira digitalização da vida real. Vivemos em fazendas, depois em cidades, e agora vamos viver na Internet!”

O primeiro contato dele com a criação dos garotos prodígios foi no quarto de uma garota com quem transou, através do computador aberto na página dela da rede social. Chama Amy (Dakota Johnson) e ela responde à pergunta sobre aquele website: “The Facebook? Temos em Stanford, tipo, há 2 semanas. É o máximo, só que vicia demais”.

Um acerto espetacular de Zuckerberg e parceiros. O Facebook rendeu-lhes fortunas e um enorme sucesso entre pessoas de todas as idades, no mundo todo, um “vício” que poucos conseguiram evitar.

Da minha parte, confesso que acho muito chato olhar as fotos dos outros com a filharada, pets, programas, viagens. Um certo exibicionismo social. Mas se as pessoas se divertem com essas coisas inocentes (principalmente quem posta as fotos), tudo bem. Essa dança festiva de clics, dígitos, likes, imagens, selfies, nomes, emoticons, reconheço que é uma curtição para quem gosta. Reencontrar amigos, restabelecer amizades quando pertinentes, mesmo que virtualmente, é outro ponto bacana. Conteúdos interessantes (ou não) também são compartilhados nas redes. Cada usuário reproduz seu nível de cultura, educação e informação.

Mas existe um lado nem tão singelo assim que se revelou mais tarde, algo que a turma de Zuckerberg jamais imaginou. Na verdade, perverso. “A perda da inocência”, referência de David Fincher aplicada ao filme mas sendo transposta para a realidade atual. Meias verdades, quase verdades, até verdades ou mentiras deslavadas, boatos infundados sem necessitar comprovação são disseminados pelas redes, com objetivos políticos e econômicos, e transformam-se em Verdades Absolutas. O que estão chamando de pós-verdade. Mobilizações sociais, golpes políticos, opinião pública manipulada, votações influenciadas (a eleição de Trump é um exemplo) são a consequência direta dessa arma poderosa que as estratégias de dominação ideológica lançam mão, como um monstro que espalha seus tentáculos empunhando bisturis em incisões afiadas nos cérebros das vítimas. Ninguém fica realmente imune ao seu poder. Sempre que a criatividade humana inventa alguma coisa interessante, o Sistema dela se apropria e a utiliza conforme seus interesses, geralmente bem-sucedidos.

Sob outro ângulo, Zygmunt Bauman, brilhante filósofo polonês, recentemente falecido, em entrevista muito perspicaz ao jornal El País, alertou que as redes sociais podem ser uma armadilha:

“A questão da identidade foi transformada de algo preestabelecido em uma tarefa: você tem que criar a sua própria comunidade. Mas não se cria uma comunidade, você tem uma ou não; o que as redes sociais podem gerar é um substituto. A diferença entre a comunidade e a rede é que você pertence à comunidade, mas a rede pertence a você. É possível adicionar e deletar amigos, e controlar as pessoas com quem você se relaciona. Isso faz com que os indivíduos se sintam um pouco melhor, porque a solidão é a grande ameaça nesses tempos individualistas. Mas, nas redes, é tão fácil adicionar e deletar amigos que as habilidades sociais não são necessárias. Elas são desenvolvidas na rua, ou no trabalho, ao encontrar gente com quem se precisa ter uma interação razoável. Aí você tem que enfrentar as dificuldades, se envolver em um diálogo. O papa Francisco, que é um grande homem, ao ser eleito, deu sua primeira entrevista a Eugenio Scalfari, um jornalista italiano que é um ateu autoproclamado. Foi um sinal: o diálogo real não é falar com gente que pensa igual a você. As redes sociais não ensinam a dialogar porque é muito fácil evitar a controvérsia… Muita gente as usa não para unir, não para ampliar seus horizontes, mas ao contrário, para se fechar no que eu chamo de zonas de conforto, onde o único som que escutam é o eco de suas próprias vozes, onde o único que veem são os reflexos de suas próprias caras. As redes são muito úteis, oferecem serviços muito prazerosos, mas são uma armadilha.”

Numa sociedade cada vez mais individualista, as redes sociais, a par de seu lado lúdico, sujeitas à contradição entre a solidão real e a comunicação virtual - inocente, interessante ou cínica - reproduzem esse comportamento, mas possuem potencial para ajudar na construção de uma sociedade mais solidária. Depende de nós.

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