(“Você vai se deixar destruir ou vai transformar o infortúnio em triunfo?")
Algum tempo atrás adquiri uma peça valiosa para minha coleção de DVDs. Sim, eu
coleciono DVDs e Blu-rays originais. São minhas mídias preferidas. Os serviços de streaming considero muito limitados. Downloads
não são minha praia, muito menos pirataria. É um sentimento um pouco vintage (é
irresistível o charme de certas coisas antigas), um pouco ético (no caso da
pirataria, não pretendo financiar o crime organizado e respeito os comerciantes
que lutam para pagar os impostos), mas sobretudo prezo pela qualidade do
material, pela identificação afetiva com o formato e pelo deleite do programa. Algo
semelhante a preferir livros impressos em papel. DVDs e Blu-rays são as mídias
por excelência para o home theater, que valorizam o prazer de assistir em casa
a um bom filme, seriado ou musical. Se são incorporados à minha coleção
particular, o prazer é redobrado. Sigo essa teoria com um fervor quase
religioso, quase fanático. Quem é colecionador, seja lá do que for,
compreende...
Gosto
de garimpar ofertas de bons títulos, mas às vezes o investimento é inevitável. Foi
o caso desta compra. A peça que consegui é uma caixa com cinco filmes do mestre
japonês AKIRA KUROSAWA, lançada pela Europa Filmes, na época esgotada no
mercado, mas agora, felizmente, relançada pela mesma distribuidora. Comprei
pelo Mercado Livre, de um vendedor do interior de São Paulo que resolvera se
desfazer do artigo de sua coleção particular (evidentemente que por um preço
maior de mercado, visto que na época era uma raridade).
Faço a sugestão para
quem gosta de clássicos. Os cinco filmes contemplados são obras de arte
indiscutíveis.
CÉU
E INFERNO, filme de 1963, com Toshiro Mifune, é um excelente drama de suspense,
superior à maioria dos similares hollywoodianos. Considero um dos melhores
filmes desse gênero que já assisti. Ao se deparar com um caso de sequestro, um
empresário honesto e idealista confronta-se com um dilema ético potencializado
pela estratificação social inerente às sociedades capitalistas. As duas pontas
da relação capital e trabalho relacionam-se de forma ambígua e despudorada num
filme emocionante e envolvente. Destaque também para a metódica investigação da
polícia.
CÃO
DANADO (1949) é outro interessante drama policial. É considerado a primeira
obra-prima de Kurosawa. O lendário ator Toshiro Mifune interpreta um policial
que teve sua arma roubada. Sentindo-se humilhado, ele empreende uma busca
obstinada para recuperá-la, através do submundo de sua cidade. Ao
descobrir que a arma veio a ser utilizada num crime, naturalmente sente-se
responsável. É quando o Chefe de Polícia lhe diz: "Um infortúnio pode destruir
ou fortalecer uma pessoa. Você vai se deixar destruir? Pode-se transformar o
azar em sorte." Toshiro Mifune prossegue com seu calvário em busca de redenção,
lembrando-se do comentário feito por seu parceiro, Sr. Sato, a respeito do criminoso
procurado: "Cão danado só enxerga numa única direção."
Os demais são filmes de samurais.
SANJURO
é um filme de aventura divertido e inteligente, de 1962. Continuação de Yojimbo, outro grande clássico do mestre japonês. O personagem Sanjuro é um
ronin, samurai sem mestre, irreverente e debochado. Hábil com a espada e com as
palavras ("Uma espada de um amigo estúpido é mais mortal que a de um inimigo").
Sanjuro, interpretado também por Toshiro Mifune, ator preferido de Kurosawa, se junta a um inexperiente grupo de jovens idealistas que querem combater a
corrupção em seu povoado. Note-se a atualidade do tema. Akira Kurosawa combina
ação, planos ardilosos e comédia (as cenas em que o prisioneiro entra e sai do
armário interagindo com seus captores são hilárias), compondo um filme
irresistível que se assiste com um prazer juvenil. Diversão garantida no nosso
home cinema.
DEPOIS
DA CHUVA é um filme póstumo, o único da coleção não dirigido por Kurosawa.
Explico melhor: baseado no último roteiro escrito pelo diretor, mas não filmado,
foi lançado em 1999, após sua morte, e dirigido por Takashi Koizumi, discípulo
do mestre japonês, a quem auxiliara neste mesmo roteiro. Portanto, é um
autêntico Kurosawa. Um belo filme sobre um ronin à procura de emprego. Gentil e
sorridente, Ihei Musawa paga um alto preço por querer ajudar os pobres e
necessitados. Viaja acompanhado por sua esposa, uma doce criatura, mas enérgica
quando necessário, que o compreende e apoia nas dificuldades. "Você é incapaz
de pisar nos outros para tomar o lugar deles. Acho você maravilhoso", reflete ela
sobre o marido. Takashi Koizumi honra Akira Kurosawa, dirigindo o filme pela
perspectiva do mestre e dando vida a um dos mais belos poemas sobre o Japão
medieval.
Por
fim, no último item da coleção Kurosawa, um dos maiores épicos de todos os
tempos, OS SETE SAMURAIS, de 1954. Pode ser colocado, na história do cinema,
lado a lado com Ben-Hur, Reds ou Lawrence da Arábia. É um dos filmes
responsáveis pela abertura do Ocidente ao cinema japonês e teve adaptações
hollywoodianas lendárias, como Sete Homens e Um Destino e Vida de Inseto,
da Pixar.
O
filme conta a estória de um vilarejo de lavradores, que atemorizados com os
ataques constantes de bandidos, resolve contratar samurais para protegê-los, treiná-los
e liderá-los para um enfrentamento contra o bando de quarenta malfeitores que
voltará para saqueá-los, após a colheita da cevada. Como são pobres e não têm
dinheiro para pagá-los, precisam encontrar sete samurais famintos, que aceitem
trabalhar por comida, conforme colocou o ancião líder do vilarejo. Um grupo
parte da aldeia com essa missão. Uma tarefa praticamente impossível que vai
tomando forma à medida que o drama dos lavradores vai comovendo tanto aqueles que
passam a acompanhar o processo, quanto os próprios samurais que vão sendo
recrutados sob o pretexto de comida e diversão. O primeiro samurai contratado,
que se torna o líder do bando, Kambei (Takashi Shimura), fala para um amigo
antigo, no processo de recrutamento: "Estamos nos preparando para uma guerra.
Sem glória e sem dinheiro. Talvez a gente morra." O outro samurai apenas sorri,
como se a ironia do argumento fosse o suficiente para aceitar a missão. Uma série de
dramas pessoais e coletivos vão-se entrelaçando à medida que o embate com os
bandidos se aproxima e se desenvolve, inundando a tela com emoções
contraditórias, carregadas de adrenalina, que explodem num filme eletrizante,
emocionante e comovente. Exagerar nos adjetivos é pouco para expressar a
grandeza desse épico. Não foi de graça o enorme sucesso internacional que o
filme alcançou em sua época.
Um
dos aspectos interessantes do filme, entre tantos apresentados, é o arquétipo
do Velho Sábio. Essa é uma das imagens que o psicanalista C. G. Jung utilizava para exemplificar sua teoria do Inconsciente Coletivo. Uma das formas em que a
humanidade se imagina em comunhão com um "Espírito Sábio". A figura do Velho
Sábio é recorrente em vários mitos e lendas, em todas as eras e culturas. No
filme, é representada pelo ancião que planejou a contratação dos
samurais e cuja sabedoria é respeitada pela aldeia. Em determinada cena, quando
o povo se esconde com medo dos guerreiros contratados que chegam à sua vila, o
velho explica para os samurais: "Meu povo é muito tolo. Sempre se preocupam com
alguma coisa. Chuva, sol, vento. Eles se acordam preocupados e vão dormir
preocupados. Mas hoje é diferente. Só estão preocupados. Sem nenhum motivo, só
isso."
Outra
sacada legal do filme é o personagem de Toshiro Mifune, o samurai Kikuchiyo.
Espalhafatoso, fanfarrão, dinâmico, e às vezes atrapalhado, é responsável por
momentos cômicos e outros sérios. Carismático, entre tantas figuras
carismáticas que o elenco apresenta. Em certo momento, abandona seu posto
de vigilância e entra no acampamento dos bandidos como se fosse um deles.
Consegue roubar uma das armas de fogo, um dos trunfos dos agressores. Ao
voltar para a aldeia sitiada recebe uma reprimenda de Kambei, por ter deixado
seu posto: "Não há honra nisso. Escute. Você não pode lutar uma guerra
sozinho!"
A cumplicidade e solidariedade contraditórias entre personas tão
diferentes entre si, como samurais e lavradores, que precisam lutar juntos, é
um dos aspectos que confere tanta emoção a essa obra-prima. Ao final, o líder
samurai encerra a epopeia com a constatação da própria fragilidade de sua
classe: "E, mais uma vez, fomos derrotados. Os vencedores são os lavradores;
não nós."
Enfim,
há muita riqueza a ser descoberta sobre o cinema japonês e Akira Kurosawa. Fica
a sugestão do box, uma amostra de um cinema lendário cuja sensibilidade e
cultura engrandecem nossa alma.
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