domingo, 23 de agosto de 2015

AKIRA KUROSAWA

(“Você vai se deixar destruir ou vai transformar o infortúnio em triunfo?")





Algum tempo atrás adquiri uma peça valiosa para minha coleção de DVDs. Sim, eu coleciono DVDs e Blu-rays originais. São minhas mídias preferidas. Os serviços de streaming considero muito limitados. Downloads não são minha praia, muito menos pirataria. É um sentimento um pouco vintage (é irresistível o charme de certas coisas antigas), um pouco ético (no caso da pirataria, não pretendo financiar o crime organizado e respeito os comerciantes que lutam para pagar os impostos), mas sobretudo prezo pela qualidade do material, pela identificação afetiva com o formato e pelo deleite do programa. Algo semelhante a preferir livros impressos em papel. DVDs e Blu-rays são as mídias por excelência para o home theater, que valorizam o prazer de assistir em casa a um bom filme, seriado ou musical. Se são incorporados à minha coleção particular, o prazer é redobrado. Sigo essa teoria com um fervor quase religioso, quase fanático. Quem é colecionador, seja lá do que for, compreende...

Gosto de garimpar ofertas de bons títulos, mas às vezes o investimento é inevitável. Foi o caso desta compra. A peça que consegui é uma caixa com cinco filmes do mestre japonês AKIRA KUROSAWA, lançada pela Europa Filmes, na época esgotada no mercado, mas agora, felizmente, relançada pela mesma distribuidora. Comprei pelo Mercado Livre, de um vendedor do interior de São Paulo que resolvera se desfazer do artigo de sua coleção particular (evidentemente que por um preço maior de mercado, visto que na época era uma raridade). 

Faço a sugestão para quem gosta de clássicos. Os cinco filmes contemplados são obras de arte indiscutíveis.

CÉU E INFERNO, filme de 1963, com Toshiro Mifune, é um excelente drama de suspense, superior à maioria dos similares hollywoodianos. Considero um dos melhores filmes desse gênero que já assisti. Ao se deparar com um caso de sequestro, um empresário honesto e idealista confronta-se com um dilema ético potencializado pela estratificação social inerente às sociedades capitalistas. As duas pontas da relação capital e trabalho relacionam-se de forma ambígua e despudorada num filme emocionante e envolvente. Destaque também para a metódica investigação da polícia.

CÃO DANADO (1949) é outro interessante drama policial. É considerado a primeira obra-prima de Kurosawa. O lendário ator Toshiro Mifune interpreta um policial que teve sua arma roubada. Sentindo-se humilhado, ele empreende uma busca obstinada para recuperá-la, através do submundo de sua cidade. Ao descobrir que a arma veio a ser utilizada num crime, naturalmente sente-se responsável. É quando o Chefe de Polícia lhe diz: "Um infortúnio pode destruir ou fortalecer uma pessoa. Você vai se deixar destruir? Pode-se transformar o azar em sorte." Toshiro Mifune prossegue com seu calvário em busca de redenção, lembrando-se do comentário feito por seu parceiro, Sr. Sato, a respeito do criminoso procurado: "Cão danado só enxerga numa única direção."

Os demais são filmes de samurais.

SANJURO é um filme de aventura divertido e inteligente, de 1962. Continuação de Yojimbo, outro grande clássico do mestre japonês. O personagem Sanjuro é um ronin, samurai sem mestre, irreverente e debochado. Hábil com a espada e com as palavras ("Uma espada de um amigo estúpido é mais mortal que a de um inimigo"). Sanjuro, interpretado também por Toshiro Mifune, ator preferido de Kurosawa, se junta a um inexperiente grupo de jovens idealistas que querem combater a corrupção em seu povoado. Note-se a atualidade do tema. Akira Kurosawa combina ação, planos ardilosos e comédia (as cenas em que o prisioneiro entra e sai do armário interagindo com seus captores são hilárias), compondo um filme irresistível que se assiste com um prazer juvenil. Diversão garantida no nosso home cinema

DEPOIS DA CHUVA é um filme póstumo, o único da coleção não dirigido por Kurosawa. Explico melhor: baseado no último roteiro escrito pelo diretor, mas não filmado, foi lançado em 1999, após sua morte, e dirigido por Takashi Koizumi, discípulo do mestre japonês, a quem auxiliara neste mesmo roteiro. Portanto, é um autêntico Kurosawa. Um belo filme sobre um ronin à procura de emprego. Gentil e sorridente, Ihei Musawa paga um alto preço por querer ajudar os pobres e necessitados. Viaja acompanhado por sua esposa, uma doce criatura, mas enérgica quando necessário, que o compreende e apoia nas dificuldades. "Você é incapaz de pisar nos outros para tomar o lugar deles. Acho você maravilhoso", reflete ela sobre o marido. Takashi Koizumi honra Akira Kurosawa, dirigindo o filme pela perspectiva do mestre e dando vida a um dos mais belos poemas sobre o Japão medieval.

Por fim, no último item da coleção Kurosawa, um dos maiores épicos de todos os tempos, OS SETE SAMURAIS, de 1954. Pode ser colocado, na história do cinema, lado a lado com Ben-Hur, Reds ou Lawrence da Arábia. É um dos filmes responsáveis pela abertura do Ocidente ao cinema japonês e teve adaptações hollywoodianas lendárias, como Sete Homens e Um Destino e Vida de Inseto, da Pixar.

O filme conta a estória de um vilarejo de lavradores, que atemorizados com os ataques constantes de bandidos, resolve contratar samurais para protegê-los, treiná-los e liderá-los para um enfrentamento contra o bando de quarenta malfeitores que voltará para saqueá-los, após a colheita da cevada. Como são pobres e não têm dinheiro para pagá-los, precisam encontrar sete samurais famintos, que aceitem trabalhar por comida, conforme colocou o ancião líder do vilarejo. Um grupo parte da aldeia com essa missão. Uma tarefa praticamente impossível que vai tomando forma à medida que o drama dos lavradores vai comovendo tanto aqueles que passam a acompanhar o processo, quanto os próprios samurais que vão sendo recrutados sob o pretexto de comida e diversão. O primeiro samurai contratado, que se torna o líder do bando, Kambei (Takashi Shimura), fala para um amigo antigo, no processo de recrutamento: "Estamos nos preparando para uma guerra. Sem glória e sem dinheiro. Talvez a gente morra." O outro samurai apenas sorri, como se a ironia do argumento fosse o suficiente para aceitar a missão. Uma série de dramas pessoais e coletivos vão-se entrelaçando à medida que o embate com os bandidos se aproxima e se desenvolve, inundando a tela com emoções contraditórias, carregadas de adrenalina, que explodem num filme eletrizante, emocionante e comovente. Exagerar nos adjetivos é pouco para expressar a grandeza desse épico. Não foi de graça o enorme sucesso internacional que o filme alcançou em sua época.

Um dos aspectos interessantes do filme, entre tantos apresentados, é o arquétipo do Velho Sábio. Essa é uma das imagens que o psicanalista C. G. Jung utilizava para exemplificar sua teoria do Inconsciente Coletivo. Uma das formas em que a humanidade se imagina em comunhão com um "Espírito Sábio". A figura do Velho Sábio é recorrente em vários mitos e lendas, em todas as eras e culturas. No filme, é representada pelo ancião que planejou a contratação dos samurais e cuja sabedoria é respeitada pela aldeia. Em determinada cena, quando o povo se esconde com medo dos guerreiros contratados que chegam à sua vila, o velho explica para os samurais: "Meu povo é muito tolo. Sempre se preocupam com alguma coisa. Chuva, sol, vento. Eles se acordam preocupados e vão dormir preocupados. Mas hoje é diferente. Só estão preocupados. Sem nenhum motivo, só isso."

Outra sacada legal do filme é o personagem de Toshiro Mifune, o samurai Kikuchiyo. Espalhafatoso, fanfarrão, dinâmico, e às vezes atrapalhado, é responsável por momentos cômicos e outros sérios. Carismático, entre tantas figuras carismáticas que o elenco apresenta. Em certo momento, abandona seu posto de vigilância e entra no acampamento dos bandidos como se fosse um deles. Consegue roubar uma das armas de fogo, um dos trunfos dos agressores. Ao voltar para a aldeia sitiada recebe uma reprimenda de Kambei, por ter deixado seu posto: "Não há honra nisso. Escute. Você não pode lutar uma guerra sozinho!" 

A cumplicidade e solidariedade contraditórias entre personas tão diferentes entre si, como samurais e lavradores, que precisam lutar juntos, é um dos aspectos que confere tanta emoção a essa obra-prima. Ao final, o líder samurai encerra a epopeia com a constatação da própria fragilidade de sua classe: "E, mais uma vez, fomos derrotados. Os vencedores são os lavradores; não nós."

Enfim, há muita riqueza a ser descoberta sobre o cinema japonês e Akira Kurosawa. Fica a sugestão do box, uma amostra de um cinema lendário cuja sensibilidade e cultura engrandecem nossa alma.

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