sábado, 29 de agosto de 2015

O HOMEM QUE MATOU O FACÍNORA

(“Imprima-se a lenda.”)





Quem não tem um amigo ou parente advogado? Pois é, a turma do Direito é presença constante em nossas vidas pessoais ou profissionais. No meu caso, sou casado com uma advogada, tenho vários amigos e parentes advogados, e no meu local de trabalho a maioria dos colegas são advogados. Eu mesmo estudei dois anos de Direito na UFRGS. Não gostava da linguagem empolada do Curso e troquei de faculdade. Mas reconheço a nobreza das Ciências Jurídicas e Sociais. Mais do que defensores de direitos e leis, os advogados podem ser considerados, em seu conceito mais elevado, como a imagem idealizada de guardiões da Justiça. Embora, muitas vezes, a realidade confronte essa imagem, o que importa é o espírito nobre dessa secular profissão. Em homenagem aos meus amigos do Direito, resolvi escrever sobre um filme que muito admiro.

Os filmes de advogados são um gênero tradicional do cinema americano. Grandes filmes como Advogado do Diabo, Testemunha de Acusação, Doze Homens e Uma Sentença, O Sol É Para Todos, etc. E talvez o melhor do gênero, uma das mais importantes produções americanas, O HOMEM QUE MATOU O FACÍNORA (The Man Who Shot Liberty Valance). Western de 1962, de John Ford, mestre deste gênero, com James Stewart, John Wayne, Vera Miles, Lee Marvin e Edmond O’Brien.

Também um filme sobre o nobre papel da Imprensa. Uma fita que faz a apologia de dois pilares da democracia: o Direito, como defensor da lei e da ordem, e a Liberdade de Imprensa. Mas este filme extraordinário, que contempla dois gêneros máximos do cinema americano, advogado e western, ainda é mais do que isso.

James Stewart  é Ransom Stoddard, um jovem idealista recém-formado em Direito, que chegou a uma pequena cidade do Velho Oeste ("Vá para o Oeste, rapaz. Atrás de fama, fortuna e aventura", citação que relembra anos depois), disposto a trabalhar com seu ofício numa localidade que desconhecia esse traço civilizatório. Um forasteiro que ao invés de arma carregava livros. O contraste entre o novo e o velho, a civilização e progresso que vem do Leste e o conservadorismo do Oeste primitivo, é um tema recorrente nos westerns.

O filme é narrado em flashback, com o advogado, agora um político respeitável, que retorna muitos anos depois, com sua esposa, Vera Miles, à pequena Shinbone, já adaptada aos novos tempos, por conta do falecimento de um amigo. A morte desse amigo representa o final de uma era. Stoddard conta sua própria história para um jornalista local que deseja saber a verdade sobre o mito que se criou em torno de seu nome. Antes, ao chegarem na estação ferroviária, foram recebidos por um velho amigo, o antigo xerife. Hallie (Vera Miles) comentou: "Esse lugar mudou mesmo." O ex-xerife respondeu: "Foi a estrada de ferro. O deserto continua o mesmo." Antes da estrada de ferro se desenvolve a história narrada.

Naquela época, Ransom Stoddard precisava trabalhar como lavador de pratos no saloon local, onde se apaixonara por Hallie. Seu amigo e aliado, o jornalista Dutton Peabody, permitira que ele colocasse, na fachada do seu jornal, uma placa oferecendo seus serviços de attorney at law. Também era professor. "A educação é a base da lei e da ordem", estava escrito no seu quadro-negro. Encontraria muitas dificuldades para pôr em prática seu projeto, o respeito às leis. A cruzada de Stoddard, seu ideal e maneiras civilizadas contra a crueza da luta simples pela sobrevivência é o mote principal do filme.

John Wayne é uma atração à parte. Sempre interpretando a si mesmo, ele é Tom Doniphon, cowboy que encarna as virtudes dos homens do Velho Oeste.  É o contraponto de Stewart, sempre advertindo sobre a natureza hostil da região. Representa os homens rudes que contrastam com o almofadinha Ransom. Ambos disputam a preferência romântica de Vera Miles. Impossível não se impressionar com o carisma do velho John Wayne e sua persona heroica e conflitada do cowboy que breve irá desaparecer.

O western é tradicionalmente um cinema político, o que valoriza ainda mais esse gênero icônico. Muitas vezes os vilões são grandes fazendeiros, detentores do poder econômico, que oprimem a população humilde. Lee Marvin é Liberty Valance, o próprio facínora do título, a arma empunhada pelos latifundiários para defender seus privilégios. E inimigo do idealista James Stewart.

Outro grande ator do filme é Edmond O’Brien, que representa o jornalista pioneiro, proprietário do Shinbone Star, Dutton Peabody, que com seu pequeno jornal, em nome da liberdade de imprensa, afronta os poderosos da região, naqueles tempos anteriores à estrada de ferro. Ao contrário dos nossos jornais de hoje, que só publicam notícias de acordo com seus interesses políticos, para Peabody tudo que fosse importante era notícia. Em uma das melhores cenas do filme, a eleição de dois representantes da comunidade, Ransom  indica Peabody. Este retruca, atônito, como se não acreditasse no que estava acontecendo: "Sou um jornalista, não um político! Eu faço os políticos! Eu os ponho lá em cima e depois os destruo!"

O Homem Que Matou o Facínora é também uma fita sobre a ironia amarga da vida. Alguns colhem os louros e fama pelos méritos de outros, que permanecerão desconhecidos. Como se o progresso e evolução se escorassem em heróis anônimos, condenados para sempre ao obscurantismo. Um carma carregado pela civilização. Numa das cenas finais, o editor do jornal que conduz a entrevista, após o término da narrativa do agora respeitado senador Ransom Stoddard, rasga as folhas que contêm a versão real da história e responde à pergunta do próprio se não irá publicá-la:

"Não, senhor. Estamos no Oeste. Quando a lenda se torna fato, imprima-se a lenda."

Western que gostamos cada vez mais à medida que revemos, O Homem Que Matou o Facínora é um dos maiores clássicos de todos os tempos.

E aproveito para citar as palavras do editor, reportando-me novamente ao belo ofício dos amigos advogados: Imprima-se a lenda!

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