quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

BAD SANTA

(“Olhe toda essa porcaria. Precisa mesmo de tudo isso? Pelo amor de Deus, é Natal.”)




Amy Winehouse é nossa cantora preferida. Falo por mim e minha mulher. Lamentamos muito sua morte tão prematura, no auge da carreira. Quanta coisa legal poderia estar fazendo. Mas o que quero contar é que eu e Amy tínhamos algo em comum, além dos pubs de Camden Town, que conheci quando fiquei um mês e meio em Londres (isso já é outra história). Ambos compartilhávamos de uma mesma opinião: o melhor filme de Natal de todos os tempos é BAD SANTA (no Brasil, Papai Noel às Avessas). Assisti, certa vez, a uma entrevista dela manifestando sua predileção pelo filme como o top do gênero.

Bad Santa é uma comédia americana de 2003, produzida pelos irmãos Weinstein e pelos irmãos Coen, dirigida por Terry Zwigoff e protagonizada por um Billy Bob Thornton hilário, completamente canalha, fazendo o papel de um vigarista, que no período do Natal, trabalhando como Papai Noel e associado a um anão que se fantasia de elfo, sobrevive de roubos a cofres nas lojas de departamentos onde trabalha.

Todos os personagens são divertidos. Willie (Thornton) está sempre bêbado, inclusive com as vestes vermelhas do senhor do Polo Norte recebendo as crianças com seus pedidos. O anão, Marcus (Tony Cox), sempre leva de casa, ao realizar os assaltos nos magazines, uma lista de “compras” encomendada por sua mulher. Um inspetor encarregado da segurança de uma grande loja (Bernie Mac) é uma ameaça à dupla de assaltantes.

O garoto de oito anos (Brett Kelly), o kid, grande e gordinho, impassível, ingênuo e vítima de bullyngs, com quem Willie passa a conviver, já que para o menino ele é Santa Claus e o bandido não tem onde se esconder, foi um achado de tão engraçado. Na casa onde Willie se estabelece, o garoto mora com uma avó esclerosada, que volta e meia parece que está morta mas acorda saltitante para fazer sanduíches. E a “irmã da Mamãe Noel”, bartender e namorada de Willie, a sensual Lauren Graham, tem um fetiche pela figura do Papai Noel.

Por que Bad Santa é o melhor filme de Natal?

1) Porque é muito engraçado. É o principal papel cômico de Billy Bob Thornton, onde seu personagem é sempre mal-humorado e ranzinza, mas ao mesmo tempo simpático. O diretor Terry Zwigoff conta que quando sua agente lhe mostrou o roteiro advertiu-o que era um filme que nunca seria feito. Ele leu o roteiro no avião e foi até constrangedor, uma vez que gargalhava em voz alta. “Achei muito engraçado, os diálogos eram ótimos. Liguei para ela e disse que queria dirigir o filme. E ela me disse: "Boa sorte. Tomara que encontre alguém para fazê-lo.” Felizmente Bob e Harvey Weinstein tiveram coragem de produzir a comédia e nós também podemos gargalhar como desvairados.

2) É politicamente incorreto. As cenas da luta de boxe entre o anão e o menino gordinho, ou quando Willie dá uma surra num garoto mais velho que batera no kid, sentindo que fez algo construtivo na vida, são de rolar de rir.

3) Thornton é um bandido decadente e alcoólatra, mas é capaz de sentir compaixão. Conforme a atriz Lauren Graham, “ele é um cara que gosta de beber, fazer sexo e ganhar uma grana fácil”. No entanto, sua amizade com o kid é inusitada, divertida e, de uma maneira bizarra, redentora. Ele até critica o “consumismo” do parceiro e sua mulher numa cena sob suspense: “Olhe toda essa porcaria. Precisa mesmo de tudo isso? Pelo amor de Deus, é Natal.”

4) É comovente. Tem o espírito natalino. Quase choramos na cena em que Billy Bob Thornton enfrenta de tudo para entregar o presente de Natal para o garoto, inclusive as balas da polícia...que atira no Papai Noel, para horror das crianças da vizinhança!

Uma comédia impagável, incorreta, bizarra, até comovente, mas com o espírito desta data celebrada no mundo inteiro. Não passem o Natal sem assistir a Bad Santa

terça-feira, 15 de novembro de 2016

CÓPIA FIEL

(“Esqueça o original. Consiga uma boa cópia.”)




O mundo do cinema ficou um pouco mais órfão com a morte de Abbas Kiarostami, em julho de 2016. Principal nome do cinema iraniano que invadiu o Ocidente a partir da segunda metade dos anos oitenta, com sua temática sensível e universal, Kiarostami é considerado um dos maiores diretores de todos os tempos. A definição de Goddard é emblemática: “O cinema começou com D. W. Griffith e terminou com Abbas Kiarostami”.

Deixou um legado composto por grandes clássicos, como Gosto de Cereja, Através das Oliveiras, O Vento nos Levará, Close-Up, Onde Fica a Casa do Meu Amigo?, Dez e o extraordinário CÓPIA FIEL (Copie Conforme), de 2010, coprodução França-Itália-Bélgica, com Juliette Binoche e William Shimell, filmado no sudoeste da Toscana. Kiarostami, além da direção, também é responsável pelo roteiro. A fotografia expressiva é de Luca Bigazzi.

Meu interesse por Cópia Fiel foi renovado pelas conversas com meus amigos arquitetos e cinéfilos, Paulo Cesa, fã do filme, Joca Petrucci e Renato Menegotto. Em nossas discussões confirmávamos o que já havia sido escrito na imprensa: cada vez que revíamos o filme surgiam sempre mais perguntas que respostas. Cada possível interpretação que desenvolvíamos originava novos questionamentos. Uma fábula instigante, bela e sutil sobre original e cópia, arte, percepção, simplicidade, relacionamentos, incomunicabilidade, modernidade, imagens, reflexos, ilusões e condição humana.

William Shimell é James Miller, escritor britânico. Juliette Binoche é a proprietária francesa de uma galeria de arte, cujo nome nunca é revelado. E o ator mirim Adrian Moore  é  seu filho Julien.

Podemos dividir o filme em quatro etapas narrativas, todas interligadas: James palestrando sobre seu livro na Toscana; Juliette Binoche e o filho pré-adolescente; ela e James conhecendo-se e ela e James como casal.

Na palestra sobre seu livro, Copie Conforme, James Miller inicia comentando o subtítulo provocativo que agregou a pedido dos editores: Esqueça o original. Consiga uma boa cópia. Simultânea à referência do escritor ao subtítulo, a câmera apresenta a imagem de um menino em pé a um canto, gesticulando para sua mãe, Binoche, sentada na primeira fila. Aliás, tanto a mãe quanto o garoto tinham assentos reservados.

James discorre sobre conceitos de originalidade e cópia. “Minha intenção era mostrar que uma cópia tem importância, que ela remete ao original e atesta seu valor.” Comenta o tema em termos de contextualização histórica e faz um paralelo com a reprodução humana. “Afinal, pode-se dizer que somos a réplica do DNA dos nossos antepassados.”

O tema cópia e original estará sempre presente em todo o transcorrer do filme, mesmo que de forma velada.

Binoche sai mais cedo da palestra porque o filho estava com fome, não parava quieto. Caminha pelas ruas da cidade italiana sempre à frente do garoto, que a segue jogando seu videogame. Ele, tranquilo; ela, impaciente. Uma das melhores cenas, entre tantas ótimas, é o confronto bem-humorado entre o menino e sua mãe, numa mesa de lanchonete. O garoto tira sarro dela, provocando-a por um bilhete que deixou para o escritor e pela compra de várias cópias do livro (para serem autografadas e dadas como presentes). “Sei que gosta desse James e decidiu se apaixonar por ele, e deu seu número ao amigo dele pra ele telefonar”. Ela explica que quer saber mais sobre o livro, mas vai ficando irritada, enquanto o menino, que rouba essa cena, se diverte. Parece que antecipa um evento que acontecerá mais tarde, ao questionar, rindo: “Por que não quis meu sobrenome na dedicatória? Eu tenho um sobrenome, sabe?”

James recebeu o bilhete. Uma das belas cenas do filme é o enquadramento do escritor na escada entre as paredes antigas do subterrâneo italiano, entrada da loja de antiguidades de Juliette Binoche. A câmera embaixo acompanhando a descida do inglês. “Vejo que temos um interesse em comum”, fala o escritor para a anfitriã francesa, observando as peças da loja, cópias e originais. “É melhor manter um distanciamento. Elas são atraentes mas podem lhe fazer mal. Podem ser perigosas à sua maneira. Eu as estudo, as admiro, escrevo sobre elas, mas também mantenho meu distanciamento.”  O culto às imagens e suas ilusões na civilização ocidental é um dos temas abordados por Kiarostami, bem exemplificado na ambientação italiana.

Embora a ação se passe na Itália, o filme é falado em três idiomas: italiano, francês e inglês. O diálogo inicial entre a mãe e o filho é em francês; ela e James, nesse início de contato, comunicam-se em inglês, a língua de James.

Ele propõe a ela que saiam à rua, o dia está bonito. A francesa o convida para embarcarem no carro dela e depois um passeio até o vilarejo de Lucignano. Ele concorda mas faz a ressalva que deve voltar até às 21h para pegar o trem. No trajeto discorrem sobre vários temas: sentido da existência, diversão, prazer, o interesse pelo livro dele, arte, cópias e originais (“Jóias falsas são tão boas quanto as originais. Não precisa se preocupar com elas”, Binoche cita sua irmã Marie), simplicidade (“Não é simples ser simples”, afirma James; “Qual é o limite entre uma pessoa simples e uma mente simples?”, pergunta ela; “A resposta não é simples”, responde o escritor; ela comenta sobre a irmã: “É casada com o homem mais simples do mundo”).

Conta que o marido da irmã é gago. Quando ele a chama Ma-ma-ma-ma-marie, para ela é como uma canção de amor.

Num trecho da estrada, entre as belas paisagens da Toscana, James observa: “Veja esses ciprestes. São bonitos. São singulares. Você nunca vê dois ciprestes iguais. São árvores antigas. Me disseram que existe um com mil anos de vida. Originalidade, beleza, idade, funcionalidade. São as definições de uma obra de arte. Porém, eles não estão numa galeria. Estão num campo, então ninguém presta atenção.” A discussão cópia versus original  questiona os conceitos da arte e a nossa própria percepção do objeto artístico.

Parecem duas pessoas que estão se conhecendo, mas aos poucos o tom vai ficando mais íntimo, ela demonstrando, às vezes, certa animosidade em relação a ele e sendo sempre o contraponto às teorias do escritor.

Ao chegarem em Lucignano e depararem com vários casais, de ternos e vestidos de noiva, ela explica que eles vêm se casar ali porque acham que dá sorte, existe uma árvore dourada onde juram fidelidade para sempre. “Você se casou aqui?”, pergunta James. Ela não responde, olha rapidamente para ele e atende o celular que está chamando...

Conversa ao telefone com a irmã, o filho está aloprando. Queixa-se de sua irresponsabilidade. Reclama para James que ela é que lida com as consequências, que paga por isso. James tenta defender o menino: “As crianças vivem para o momento, querem se divertir. Não pensam nas consequências ou nos custos. Porque é parte do jogo, não é uma despesa.” Mas não obtém a concordância da mãe.

Binoche os conduz ao museu onde está exposta uma pintura que chamam de cópia original. “Descobriram que é uma cópia há 50 anos, mas achavam que era um original por muitos séculos”, explica. De acordo com o guia de uma excursão, em italiano, “nesse caso, a cópia é tão bela quanto o original”. James não se mostra muito entusiasmado. Conforme seu entendimento, os admiradores dizem o quanto adoram a pintura mas sempre ressaltam que é uma cópia, cujo original está em outro lugar. “Está em Herculano, isso é fato. As pessoas precisam saber, não?”, questiona ela. “Por quê?”, retruca James. “Que diferença faz? O original é uma reprodução da beleza da moça retratada. Ela é o original. Mas, se você pensar assim, até a Mona Lisa é uma reprodução da Gioconda. E aquele sorriso? Acha que é algo original, ou Leonardo pediu que ela sorrisse assim?”

Voltam às belas ruas do vilarejo.
- Quer dizer que não há originais? – pergunta a francesa.
- Não exatamente. Há muitos originais – responde o inglês.
- Onde?
- Se me der um café, eu conto.
- Fica na esquina, estamos chegando. Então, onde está o seu original?
- Na casa de sua irmã.
- É mesmo? Na casa da minha irmã? Onde?
- É o marido dela – responde James sorrindo.
- Oh, come on...- irrita-se ela. (O marido da irmã é o “homem simples.”)

A partir do momento que entram na cafeteria de uma senhora italiana, temos um divisor de águas no filme. Algo que já se insinuava.

Sentados numa mesa, enquanto esperam o café, Juliette Binoche refere-se ao comentário de James sobre como surgiu a ideia do livro, na Piazza della Signora, em Florença. James explica que lhe chamou a atenção uma conversa entre mãe e filho, na praça, perto da estátua de David. A mãe dizia alguma coisa para o filho sobre a estátua, em francês. Ela pergunta o que ele achou de especial nessas pessoas. O inglês responde que naquela época, uns cinco anos atrás, estava em Florença para uma conferência, mas todas as manhãs observava, de sua janela do hotel, a mesma mulher descendo a rua. Ela chegava à esquina, parava, e olhava rua acima até enxergar um garotinho de oito anos, sempre atrás. A mulher “sempre de braços cruzados, como você”, comenta James. Quando se certificava que o garoto a seguia, continuava. O que o fascinava era que eles nunca caminhavam juntos. Ela nunca esperava e o menino nunca tentava alcançá-la. Mas naquela ocasião ele os vira juntos na praça pela primeira vez. O garoto sentado perto da estátua de David por um longo tempo, até a mãe se aproximar.

“Isso me parece familiar”, comenta Binoche, agora com lágrimas nos olhos, transparecendo a emoção que aos poucos se manifestava à medida que James apresentava sua história. Esse para um pouco, percebe a emoção de sua interlocutora e entende o que está acontecendo. Pede desculpas meio sem jeito, não sabia. Ela explica, “eu não estava bem naquela época”.

Ele ainda relata que a estátua é apenas uma cópia, o original está na Accademia, mas a mãe não contou e “o garoto olhava a estátua como se fosse uma genuína, original e autêntica obra de arte”. O celular toca e James levantá-se para atendê-lo do lado de fora do café.

A senhora que trabalha na cafeteria puxa assunto com a moça francesa. Conversam em italiano. Acha que James é marido dela, que não desmente. Admira-se que ela fala a língua dele, inglês, e ele não fala a dela. Binoche conta que está há cinco anos na Itália, primeiro em Florença, depois em Arezzo e, incentivada pela conversa, confidencia queixas contra o marido, que não lhe dá a devida atenção, não se importa com ela (“Meu marido faz a barba dia sim, dia não. O  dia do nosso casamento foi de não fazer.”), só pensa em si e no seu trabalho. A italiana, numa atitude conservadora ou sábia, defende James e os homens: “Eles não têm escolha. Para eles, não trabalhar é como não respirar, é impossível”.

James retorna ao interior do café. A senhora comenta:
- Estranho ele não falar italiano depois de cinco anos aqui com a sua família.
O escritor não entende italiano e vira-se para a sua companhia.
- Ela achou que você fosse meu marido. Eu não a corrigi – explica a francesa.
James, num princípio de flerte, comenta:
- Oh, really? Obviamente, fazemos um belo casal. O que acha? O que ela disse?
- Ela está surpresa por você não falar italiano, já que sua mulher e filho vivem aqui.
- Não é totalmente culpa minha. Aprendi francês na escola. O que devo dizer agora?

Ela desconversa, mas é a partir dessa pergunta que James Miller passa a incorporar a cópia fiel do marido de Binoche, algo que ela parecia desejar. Com relação à personagem seu nome nunca fora pronunciado, e quando da dedicatória para o filho o sobrenome fora omitido, o que o menino percebera. De certa forma era como se ela tivesse a premonição do papel de esposa do Sr. Miller. O jogo que se insinuava entre eles agora será mais radical.

James comete uma declaração infeliz, entrando no espírito do alter ego: “Minha família vive sua vida e eu vivo a minha. Eles falam sua língua e eu falo a minha. Faz sentido, não?”

Ela irrita-se enquanto saem do café. Atende o celular, já na rua, e censura o filho. “É a cópia fiel do pai.” James retruca um pouco depois: “Não é justo você me dar o papel do pai ausente”.

Passam a discutir como se fossem um casal. O que ela reclama do filho, irresponsável, e ela a responsável, inverte em relação ao suposto companheiro. Critica-o por trabalhar demais, ser responsável demais, e não viver junto a ela.

Questionamentos, incomunicabilidade, idiossincrasias, intolerância, ilusões, realidade, a arte, as diferenças, o masculino, o feminino, tudo isso passa a se manifestar em suas interações. Mas também, aos poucos, o resgate do afeto, a atração, as belas recordações.

Após caminharem um pouco, já mais calma, ela conduz James ao local onde os casais, devidamente trajados como noivos, todos cópias uns dos outros, nas vestes e nos sonhos, tiram fotos e fazem as promessas de amor eterno junto à árvore simbólica. Ela, comovida; ele, irritado com a ingenuidade, com as ilusões.

Na praça onde fica uma estátua que ela admira (“Está parecendo seu filho”, ele comenta lembrando-se de Florença), por entender que seja um símbolo romântico e artístico (uma mulher repousa a cabeça no ombro de um homem), James encontra-se mais tranquilo, senta ao lado dela na pequena mureta que rodeia a fonte e passam a conversar em francês (ele falando a língua dela, mostrando-se mais próximo). Mas continuam discordando, agora pelo teor da escultura.

Em Cópia Fiel, muitas imagens são apresentadas em superfícies reflexivas (não é o reflexo uma cópia da imagem original? nossas vidas são reflexos do que poderia ser original?). Como na cena em que ele admira uma motocicleta, como se quisesse dar o fora dali, flertasse com sua liberdade, e a imagem de Juliette Binoche interagindo com os turistas, conversando sobre a estátua, aparece refletida num espelho vertical e no retrovisor da moto.

Ela puxa James para ouvir a opinião de um casal de italianos sobre a obra. O senhor, num momento a sós com o inglês, passa-lhe um conselho: “Acho que a única coisa que ela pede é que você caminhe ao lado dela e coloque a mão no seu ombro. É só o que ela espera. Mas, para ela, é vital. Todos os seus problemas poderiam ser apagados com um simples gesto. Faça esse gesto e liberte-se”. A caminho de um restaurante James encosta a mão no ombro de sua acompanhante.   

No toilette do estabelecimento, na cena mais icônica do filme, em frente a um espelho, ela passa batom nos lábios e enfeita-se com brincos. Embeleza-se para ele. Mas basta um vinho ruim numa trattoria qualquer para reacender o pavio do rancor e da intolerância. Discutem. Não se entendem. Agora, ele fala inglês, ela fala francês.

Saem do restaurante, ela caminhando na frente, ele atrás (como uma cópia dela e o filho). Temos um belo enquadramento propiciado pelo olhar sensível de Kiarostami, ambos chegando na igreja histórica e o contraste de escala entre eles e o prédio. O poder do sagrado presente na transição do estado de espírito do casal. Ela entra na igreja e ele espera do lado de fora. Estão calmos. Quando saem, agora uma distância menor entre eles, Juliette Binoche inveja um casal de velhos à frente, alquebrados e juntos.

Quando ele a alcança sentada nos degraus da entrada de uma pensione, voltam a conversar em francês. Sobre a ida à igreja, sobre a indiferença dele ao não reparar que ela se enfeitara: “O problema é que você não me vê”. Ela, por sua vez, percebera que ele mudara de perfume. Repousa o rosto no ombro dele, tal qual a estátua da praça. “Podia ter feito a barba para mim hoje. Pelo nosso aniversário”, o repreende de forma carinhosa. “É o hábito. Faço a barba dia sim, dia não”, explica James (acentuando o tom de fábula, constante no filme). “Eu sei”, ela completa.

Entram no pequeno hotel e James segue a francesa ao mesmo quarto da lua de mel. Ela está na cama, olhando para ele. É o momento das recordações (“Deitada aqui, assim...eu me lembro de tudo.”); da ternura esquecida (“Está ainda mais bela”, flerta James); da reflexão (“Se fôssemos mais tolerantes com as fraquezas alheias, seríamos menos sós”, conclui ela); da tentativa de reconciliação (“Fique. Fique. É melhor. Para nós dois, é melhor. Para você e para mim. Nos dê uma chance”, é o convite dela).

- Eu já lhe disse. Preciso estar na estação às 21h - responde James, com a voz calma, retornando em parte à realidade.
- Sim, eu sei... – ela concorda .
- Ja-ja-ja-ja-james – entoa, triste, com ternura, aceitando a situação.

O personagem de James Miller, estereótipo do homem fechado em si mesmo, está sendo posto à prova. Ele baixa um pouco a cabeça, devolve o olhar terno, levanta-se, e postado em frente a um espelho, como a cena dela na trattoria, pensa um pouco (é tudo uma ilusão? ou não?), os sinos da igreja badalam emoldurados pela janela, alisa o cabelo, e depois de alguns instantes, como que impelido pelos sinos, retorna ao quarto...

Sutilezas, questionamentos, discussões interessantes e maestria com a linguagem do cinema marcam o tom da obra de Abbas Kiarostami. E grande parte do vigor do filme, como componente vital, deve-se creditar à interpretação emotiva e sensível de Juliette Binoche, premiada em Cannes por esse desempenho. Suas cenas em close, contracenando com a câmera, são grandes momentos de magia cinematográfica.

A riqueza de Cópia Fiel proporciona vários olhares diferenciados por quem assiste, mas o importante é que a emoção e a beleza estão presentes com toda sua força. Em cópia ou original.









sexta-feira, 9 de setembro de 2016

LUA DE FEL

(“Fomos muito ambiciosos, baby.”)





Assisti várias vezes LUA DE FEL (Bitter Moon), de 1992, grande sucesso de Roman Polanski. Diretor reconhecido como um gênio do cinema, com um currículo que inclui filmes antológicos como A Dança dos Vampiros, O Bebê de Rosemary, Chinatown, Repulsa ao Sexo, O Pianista, entre outros.

Entre os grandes filmes de Polanski, Lua de Fel é o épico do amor e ódio, intenso e obsessivo. Uma ópera sobre paixão e destruição.

Com sutilezas de humor aqui e ali e uma trilha sonora perfeita, o diretor polonês equilibra uma narrativa forte, fluente e visualmente fascinante, tornando seu filme um deleite para os olhos e sentidos, sem perder a profundidade de seu tema.

São quatro personagens principais. Dois casais: Oscar (Peter Coyote), escritor americano frustrado, vivendo em Paris (clichê satírico e charmoso), preso  numa cadeira de rodas, e Mimi (Emmanuelle Seigner), sua voluptuosa esposa francesa; e os discretos ingleses Nigel ( Hugh Grant) e Fiona (Kristin Scott Thomas), passando pelo período de sete anos de casamento. Todos a bordo de um transatlântico, num cruzeiro marítimo rumo a Istambul, interagindo entre jogos de sedução e flashbacks, acompanhados pela bela trilha sonora de Vangelis e por sucessos pop.

O filme é uma dança entre vários relacionamentos: Nigel e Mimi, Nigel e Oscar, Fiona e Nigel, Mimi e Fiona e, o mais radical, a história principal, Oscar e Mimi.

Mimi protagoniza o primeiro contato com o casal de ingleses. Não se sente bem no toilette, é acudida por Fiona, que pede ajuda a Nigel. Conduzem-na para uma cadeira no convés. Ela pergunta a Fiona se vão para Istambul. “Sim, e depois vamos voar para Bombaim. E você?”, retorna a inglesa. “Mais longe. Bem mais longe”, é a resposta enigmática de Mimi.

À noite, Hugh Grant, com aquele seu jeito de inglês paspalhão, volta a encontrar Mimi no bar. Sente atração pela beleza da jovem francesa e isso é o estopim para o desenrolar dos acontecimentos no navio.

É também a deixa para a entrada em cena de Peter Coyote. Após o bar, Nigel está no convés quando surge Oscar e apresenta-se como marido de Mimi. “Veja o que ela me fez”, e descobre suas pernas na cadeira de rodas em que se locomove com dificuldade. Provoca o inglês: “Você queria trepar com ela. Admita, não é crime”. Nigel, um pouco desconcertado, balbuciando alguma coisa, sem conseguir negar, segue ouvindo Oscar. “Está louco para saber mais sobre ela, não é?” continua o americano. Convence Hugh Grant a levá-lo para sua cabine e ouvir o que tem a dizer: “Não conheço você, Nigel, mas tenho a impressão de que é exatamente o ouvinte que eu procurava. Espero que ache minha história interessante”.

Em seus aposentos, Oscar passa a contar a história dele e Mimi para um Nigel constrangido mas curioso. Passamos para a narração em flashback. Oscar em Paris, sem conseguir publicar nada, filho de uma família rica, mas, what a hell, era Paris!! O que importava? Conta como encontrou Mimi. Como se conheceram no ônibus 96 entre Montparnasse e Porte des Lilas. Ela apaixonada, ele sentindo-se no paraíso, seus jogos de amor, volúpia e sexo. Um idílio inebriante, o delírio dos amantes.

Oscar vai contando sua história por partes. Mais tarde, encontra Nigel e Fiona no restaurante. “Toda relação, mesmo harmoniosa, contém sementes de farsa ou de tragédia”, comenta com o casal, seu humor ácido sempre presente.

Entre idas e vindas de Nigel à cabine do americano, a narrativa continua. O êxtase do amor, mas, depois, também, as primeiras brigas, as primeiras decepções, o tédio. Qual é o ponto em que o amor vira o fio? Em que o desinteresse substitui o ardor? Oscar deriva para estas inflexões.

“As estações iam e vinham. O rosto de Mimi ainda tinha mil mistérios para mim. Seu corpo, mil promessas de doces. Mas, no fundo de minha mente, havia o medo de que já havíamos chegado ao auge do nosso relacionamento e que, agora, ele começaria a desmoronar”.

Após um incidente sexual inesperado, “abriu-se todo tipo de possibilidades”. “Nós nos fechamos com nossos brinquedos semanas a fio, sem sair, vendo somente um ao outro. Acho que era pedir demais para qualquer casal.”

Numa danceteria em Paris, recorda Oscar, Mimi provocou seu ciúme numa performance sensual com um colega da escola de dança. “Sempre achei a infidelidade o aspecto mais estimulante de uma relação. Aquela cena devia ter me excitado. Por que não me excitou? Por que fiquei tão magoado?”

Veio a briga e as pazes“Eu também a amava, mas estávamos caminhando para uma falência sexual”. As brincadeiras eróticas não tinham mais graça. “Finalmente o encanto estava desfeito.”

Na sessão seguinte, Nigel demonstra impaciência com os jogos de Oscar e Mimi para com ele. O americano justifica a brincadeira feita e explica a vontade da esposa francesa: quer que ele conte o resto da história, para que ela possa ter chances com Nigel. Esse externa seu mal-estar com o jogo aberto (“Você é um cafetão?”) mas Oscar não se perturba: “Não a censuro por procurar o que já não posso oferecer. Supervisiono os casos dela, em vez de me submeter a eles. Você pode tê-la, Nigel, com minha benção, mas com uma condição. Ouvir-me!”

O inglês se acalma e senta na cadeira de rodas do interlocutor. “Tenha compaixão, Nigel. Não seja duro com um homem destruído por um amor intenso demais. Os casais deviam se separar no auge da paixão e não esperar até o inevitável declínio.”

“Meu desejo por ela havia começado a diminuir. Lá estava ela deitada, maravilhosa, voluptuosa. E não significava nada para mim. Ressentia-me do fato de que ela não me excitava mais como antes. Estávamos ficando dependentes da televisão, que permite que os casais se aturem sem precisar conversar.”

“Passei a recear a hora de dormir. Sentia uma tremenda vontade de dormir. Eu ficava com pena dela. Deitada, seu corpo gritando, ávido, os órgãos em tumulto. Apertava meus lábios contra os dela como se amassa um cigarro em um cinzeiro.”

“Sentia-me como um rato numa armadilha. Paris vibrava com seus ritmos frenéticos. Batiam em minha cabeça, enlouqueciam-me. Eu queria variedade. Tinha fome de barulho e excitação.”

Oscar tentou terminar o romance. “Estou me destruindo ao lhe destruir”, falou para Mimi, continuando sua história. Nigel ouvindo. “Estamos nos destruindo, pelo amor de Deus. Vamos preservar uma bela recordação. Vamos nos separar enquanto nos resta dignidade.”

Nunca é fácil encarar uma separação. Se no navio Mimi é uma femme fatale, naqueles dias de Paris, antes de sua vingança, era apenas uma garota que se recusava a aceitar o fim implacável daquilo que já não se sustentava. Humilhou-se. Foi humilhada. Libertou-se o inferno. Retornou e devolveu a mesma crueldade. (“Idiota. Achou que eu tivesse esquecido?”)

O relacionamento de Nigel e Fiona também é posto à prova. Essa, percebendo claramente o novo interesse do marido, alerta-o: “Watch, Nigel. Anything you can do, I can do better.” Depois, ela provará sua afirmativa em uma das cenas mais sensuais do filme.

Nigel continua suas sessões com Oscar. Esse comenta seu casamento com Mimi: “Precisávamos um do outro, ela e eu. Era uma espécie de catarse, eu acho. Sabíamos que não alcançaríamos os mesmos extremos de paixão e crueldade com mais ninguém.”

Oscar e Mimi, de certa forma, se reconciliam ao final. De uma maneira estranha, trágica, definitiva. Entendemos as palavras da garota no início do filme (“Mais longe. Bem mais longe.”). Como se esse desfecho fosse esperado. Em algum momento. E desejado.

Entre cenas no navio e recordações de Paris, Polanski vai construindo e desconstruindo o processo de uma relação obsessiva, fervorosa e desgastante. Do amor ao ódio (as duas faces da mesma moeda?). A transmutação dos sentimentos é o mote que o diretor desenvolve nessa vertigem que envolve seus personagens, como se fosse um embate sórdido entre Eros e Thanatos. Toda essa epopeia pode ser resumida nas últimas palavras de Oscar:

Fomos muito ambiciosos, baby.


domingo, 7 de agosto de 2016

OS FLINTSTONES

(“Yabba-dabba-doo!”)





Para minha geração, que viveu a infância nos anos 60 ou 70, os desenhos animados da Hanna-Barbera são ícones atemporais. Eram desenhos de elaboração simples mas extremamente divertidos, cativantes, carismáticos.

Passar as tardes assistindo aos cartoons na TV era uma coisa mágica. Naquela época só existia a TV aberta, não se precisava pagar TV a cabo para a criançada se divertir com todos aqueles personagens, hoje clássicos. Como Pepe Legal, Dom Pixote, Zé Colmeia, A Tartaruga Touchê, Olho Vivo e Faro Fino, Corrida Maluca, Os Jetsons, Manda-Chuva, e entre tantos outros, o melhor de todos, OS FLINTSTONES.

Até hoje exibida nas TVs do mundo inteiro, Os Flintstones é a mais popular série da história da animação, produzida de 1960 a 1966. O maior sucesso de William Hanna e Joseph Barbera: 6 temporadas, 166 episódios, 300 milhões de telespectadores em 80 países e dublado em 22 idiomas.

Foi a primeira série de animação a contar uma história em meia hora (os cartoons anteriores eram de curta duração) e a ser exibida em horário nobre, à noite. Inicialmente foi pensada como um sitcom (situation comedy) para adultos, característica das primeiras temporadas. Em 1961 foi indicada à premiação do Emmy como melhor comédia, fato inédito na história das séries animadas, que só se repetiria em 2009 com a indicação de Family Guy (Uma Família da Pesada). A gurizada também se apaixonou pelo programa da família da Idade da Pedra e depois, principalmente com a chegada de Pedrita e Bambam, incorporou de vez o público infantil.  

Na década de 60, Os Flintstones, assim como outros desenhos da Hanna-Barbera, inclusive utilizavam recursos de uma incipiente técnica de computação gráfica, em 2D, enriquecendo a tradicional “animação limitada” (os quadros não são redesenhados inteiramente, mas em partes, gerando praticidade e economia), marca registrada dessa produtora de tantos sucessos.

Uma curiosidade: minha mulher e eu sempre preferimos assistir a filmes legendados, nunca dublados, mas no caso dos Flintstones tivemos que abrir uma exceção. Sentimos falta das vozes da dublagem brasileira (embora as originais fossem semelhantes), fazem parte da nossa memória afetiva.

Legítima comédia de costumes, Os Flintstones são os predecessores de Os Simpsons. A abertura do desenho da turma de Homer e Bart é claramente inspirada na primeira abertura dos Flintstones, até a trilha sonora é parecida. Uma bela homenagem de Matt Groening, criador dos Simpsons, à família pré-histórica e sua divertida sátira social. Como não reconhecer Fred Flintstone em Homer Simpson, autênticos classe média, legítimos ordinary people? Assim como A Família Dinossauro, outra ótima série infantil inspirada em Fred e sua turma, com a mesma verve de humor social.

Os apetrechos e engenhocas da Idade da Pedra e a ambientação de Bedrock são outros achados engraçados e geniais dos desenhistas dos Flintstones.

Alguns episódios da série, com suas gags divertidas, são antológicos. Fred e seu vizinho Barney Rubble precisam engendrar um plano para poderem jogar boliche e enganar Wilma e Betty, que querem a companhia deles na ópera. Ou quando Barney vira o chefe de Fred. Outros episódios como o de Fred cantando jazz (“Essas músicas modernas não são melodiosas”); Fred e Barney jogando golfe com um milionário, ocasião em que Fred pede ao ricaço um emprego para Barney, e ao contar que o amigo precisa de dinheiro, provoca o comentário do homem de negócios: “Já ouvi falar de pessoas pobres, mas nunca pensei encontrar uma”.

Os dois vizinhos vibrando com a folga das esposas que viajam por uma semana e, em seguida, chorando de saudades. Noutro desenho, Fred com a culpa estampada em sua cara, conforme Wilma, e o comentário de Barney: “Quando o cara põe uma aliança no dedo da esposa é ligado um radar que revela a mente dele. Por isso elas nunca tiram a aliança”. Outros episódios geniais como quando Fred e Barney resolvem largar seus empregos e abrir um drive-in, as esposas descobrem, acabam com a festa e sentenciam: “Nunca esqueceremos”; ou quando Fred comenta: “Passar roupa o dia inteiro desperta o que há de pior numa mulher”.

Num dos episódios mais engraçados, Barney é hipnotizado acidentalmente por Fred e acredita que é um cão. Noutra história, um personagem, “Grande Imperial Puba”, para salvar uma convenção, planeja recrutar as esposas dos participantes para trabalharem nos serviços do hotel: “Em casa eu não sou nada, mas na convenção sou o Grande e Augusto Puba Imperial. Eu não peço, eu mando”, só que o plano não sai como imaginado, e nossos heróis e o Grande e Augusto Puba são corridos do hotel.

Nossa identificação com os desenhos é imediata. Reconhecemos e nos divertimos com aquelas situações envolvendo maridos, esposas, amizades, brigas, pequenas mentiras, empregos, carteiras vazias, contas, inadimplências, lazer, televisão, esportes, liquidações, aspirações, sonhos, enfim, nossa vida cotidiana e nosso comportamento classe média, satirizados num timing perfeito e irresistível, com a simpatia peculiar desse clássico dos cartoons.

A Warner disponibilizou no mercado belas edições em DVDs das temporadas da família de Bedrock. Excelente programa. O humor e charme da série não envelheceram. Mesmo com todo o avanço da animação, é incrível como ainda hoje Os Flintstones são capazes de encantar crianças e adultos. Yabba-dabba-doo!!







domingo, 26 de junho de 2016

O ESTRANHO QUE NÓS AMAMOS

(“E ela estava totalmente nua. E eu pensei...eu pensei que me amasse.”)





A parceria entre Don Siegel, diretor, e Clint Eastwood, ator, rendeu vários filmes antológicos, como Dirty Harry, Fuga de Alcatraz e Os Abutres Têm Fome, mas o melhor deles é um filme pouco conhecido do público brasileiro, O ESTRANHO QUE NÓS AMAMOS (The Beguiled), de 1971.

Um conto gótico ambientado durante a Guerra de Secessão americana, com Clint Eastwood fazendo o papel de um soldado ianque ferido, descoberto no mato por uma garotinha que o leva para ser socorrido numa escola de mulheres sulistas. Vivem na escola a diretora (a veterana e ótima Geraldine Page), uma professora (Elizabeth Hartman), a criada escrava e as alunas (a menina de doze anos e outras cinco adolescentes, inclusive a sensual Jo Ann Harris). O soldado inimigo fica aos cuidados do mulherio e não imagina o que acontecerá no desdobramento da sua relação densa com essas que lhe abrigam.

O Estranho Que Nós Amamos é um dos filmes que coloco num subgênero criado em minha cabeça doentia: os filmes sobre “perversidade feminina”. Outros exemplares seriam Amar Foi Minha Ruína, Lua de Fel e Louca Obsessão. Apesar dos protestos de minha mulher e amigos, cá entre nós, não consigo descartar meu subgênero. “Não se matam pardais com canhões”, diz uma máxima do Direito. No caso das mulheres desses filmes, a vingança é desproporcional ao dano sofrido. Não querem saber de deixar o pardal escapar ileso. Se preciso usariam uma bomba H.

Curiosamente, quando o soldado chega à escola, uma imagem de um corvo com a perna amarrada ao parapeito da sacada e não podendo voar é uma alegoria à situação do estranho. Ao sair, não vou dizer de que maneira, o corvo reproduz a circunstância do cabo ianque.

O fato é que Clint aventurou-se num jogo perigoso, tratando-se de mulheres. Para garantir sua segurança em meio ao território hostil, com uma perna quebrada e debilitado, investe na sedução de cada mulher entre as líderes do internato, o que vai lhe custar caro, ao mesmo tempo que sua presença instaura o caos num ambiente feminino fechado e oprimido pela guerra, onde se sente o desejo latejando como uma bomba relógio. Da mais jovem à mais velha, nenhuma daquelas mulheres, que passam a competir entre si, fica indiferente à presença do belo soldado inimigo.

Um conto sombrio, assustador e sem concessões sobre quão longe pode chegar um desejo não correspondido, num cenário sob ameaça em que tal expectativa é a única esperança.

Obra marcante da dupla Siegel e Eastwood, O Estranho Que Nós Amamos tem seu lugar garantido no patamar dos grandes momentos do cinema psicológico.





domingo, 22 de maio de 2016

OS INOCENTES

(“Diga o nome dele, Miles! E tudo vai acabar.”)





“O maior espaço dramático, o maior suspense, está fora do quadro. Está naquilo que não vemos, apenas imaginamos.” Essas palavras de Ruy Guerra, grande cineasta brasileiro, são exatamente o conceito de OS INOCENTES (The Innocents), filme britânico de 1961, dirigido por Jack Clayton. Uma fita de horror vitoriano, um dos melhores filmes de terror de todos os tempos, com grande interpretação da diva Deborah Kerr, a participação do escritor Truman Capote no roteiro e o talento do fotógrafo Freddie Francis.

Durante muito tempo considerei o filme mais assustador a que já havia assistido. Vi pela primeira vez quando tinha uns treze anos, numa pequena TV preto-e- branco em meu quarto, deitado na cama, de madrugada, com as luzes apagadas. Parecia interessante aquele filme que estava começando, com uma canção infantil de provocar arrepios sobreposta a uma tela preta, depois o logo da Fox, os créditos dividindo a tela com duas mãos rezando, aquela fotografia escura. Uma abertura esplêndida nos inserindo direto no clima do filme inteiro. O que vi na sequência não me deixou dormir direito por uma semana, tal a força com que aquelas imagens me marcaram (e me apavoraram).

Cresci, virei adulto, mas não tinha coragem de assistir ao filme novamente. A sensação de medo que ficara em minha lembrança não me abandonara. Somente depois de muitos anos criei coragem e assisti ao filme uma segunda vez, uma terceira, uma quarta. Ainda assim continuava impressionado, como até hoje.

Citando nosso grande crítico, Rubens Ewald Filho, dificilmente encontraremos um filme de terror “com tanto requinte de fotografia, de trilha musical, de uso de ruídos e de montagem tão bem cuidada. Mais que uma batalha entre o bem e o mal, o filme é a ilustração de um pesadelo sem fim”.

Bastante fiel ao livro no qual se baseou, A Volta do Parafuso, de Henry James, Os Inocentes conta uma história passada na época vitoriana, de uma governanta, Miss Giddens (Deborah Kerr), contratada para cuidar de duas crianças, Miles e Flora, que vivem com os empregados numa mansão no campo. A própria mansão e seus arredores é um personagem importante do filme, com seus cômodos, móveis, estátuas, torre, jardins, lago. “Um lugar bem grande e solitário”, conforme o tio delas, que contratou a nova governanta. Esse mora em Londres e não quer ser incomodado, portanto Miss Giddens deve resolver todos os problemas.

Logo ela descobrirá que as pessoas da casa, as crianças e os funcionários, parecem não ser as únicas presenças. A qualidade da produção, o talento do diretor, as excelentes interpretações, a expressiva fotografia em preto-e-branco e o clima sombrio e assustador nos envolvem com o mesmo medo que sente Miss Giddens, à medida que seus receios e suspeitas vão se confirmando. O comportamento de Miles e Flora dá indícios que alguma coisa estranha está acontecendo. Por trás da aparência inocente destas crianças paira uma ameaça maligna.

No livro de Henry James não fica claro se é tudo fruto da imaginação da governanta, uma mulher solteira da Inglaterra vitoriana, sexualmente reprimida, ou se as entidades sobrenaturais realmente existem. No filme esta dúvida não é tanta.

Esse componente de repressão sexual fica mais claro na cena em que Miles, uma criança realmente demoníaca, beija Miss Giddens na boca, e depois no clímax do filme, quando ela retribui o beijo. Cenas ousadas de desejo proibido, reprimido.

O sentimento de carência afetiva desta mulher solitária também é compartilhado pelas crianças órfãs, que vivem sob a indiferença do tutor, para quem o dinheiro basta em sua relação com os sobrinhos. Isso propiciou a aproximação de Miles e Flora com o casal de amantes falecidos, os antigos caseiro, Peter Quint, e governanta, Miss Jessel. A luta de Miss Giddens contra essa possessão demoníaca conduz o pavor que perpassa a tela o tempo inteiro.

Qual seria a intenção dessas aberrações, como dizia Miss Giddens? “A resposta deve estar no passado”, confabula ela com a Sra. Grose, a principal criada da casa. Intui que o romance doentio entre os antigos empregados, assim definido pela Sra. Grose, é a explicação para os fenômenos que estão ocorrendo. “Eles só podem ter um ao outro entrando na alma das crianças e as possuindo! As crianças estão possuídas. Elas vivem, sabem e partilham deste inferno”, prossegue a governanta em seu raciocínio.

O que ela poderia fazer? De que armas Deborah Kerr poderia se valer para enfrentar essas forças sinistras? Uma seria a fé. Outra, a mesma que Freud utilizava para exorcizar os demônios de seus pacientes: o poder da confissão. O reconhecimento tácito da ameaça. “Elas precisam confessar o que está ocorrendo. Uma palavra verdadeira destas crianças e podemos despachar aqueles diabos para sempre!” As palavras de Miss Giddens são ouvidas pela Sra. Grose, que não sabe se acredita em tudo aquilo.

Só sabemos que o pesadelo sem fim vai gelar nosso sangue em cada frame desse grande filme, assim como Deborah Kerr sabe o que terá de enfrentar para salvar as crianças.

domingo, 15 de maio de 2016

TERROR

("Beware of darkness.")





Certa vez, passeando pela Livraria Saraiva, reparei que os filmes de JESS FRANCO, cineasta cult espanhol, diretor de filmes de terror B, estavam em promoção por um preço bem abaixo do normal. Comprei sete.

Os filmes do subgênero terror B, acreditem, possuem seu público fiel. São filmes recheados de sexo, violência, atores sofríveis, produção barata, história simples, e nos atraem como ímã. Só os mistérios da mente para explicar. Puro divertimento. Legítimo guilty pleasure.

Muitos desses exemplares, no entanto, são cinema de qualidade. Jess Franco (ou Jesús Franco, seu nome verdadeiro), falecido em 2013, faz parte de uma linhagem de diretores que inclui o brasileiro José Mojica Marins (Zé do Caixão), os italianos Mario Bava e Dario Argento, os americanos George Romero, Wes Craven, John Carpenter, Sam Raimi e Rob Zombie, do ótimo Rejeitados pelo Diabo, entre outros profissionais. São cineastas que se consagraram dirigindo filmes de terror de baixo orçamento e alta criatividade.

As produções de Jess Franco são dignas desse grupo. Nunca descambam para o grotesco, para o jorro de sangue gratuito. Existe sempre um movimento elegante de câmera, certa poesia marginal, alguma discussão metafísica, algumas histórias interessantes, tudo misturado com os clichês do gênero, tornando seus filmes quase cultuados. Entre os mais de duzentos que dirigiu podemos citar Oásis dos Zumbis, As Amantes do Dr. Jekyll, A Virgem e os Mortos, A Maldição da Vampira, O Massacre das Barbys, entre outros.

Mas afinal, por que gostamos tanto de filmes de terror? Provavelmente pelo fascínio do misterioso e desconhecido; talvez pela identificação com o nosso dark side,  aquelas coisas que não ousamos pensar em voz alta; certamente por existir um forte elo entre terror, psicologia e sexo. Como resistir a tais apelos?

Impossível não se deixar seduzir por grandes filmes como O Iluminado, O Bebê de Rosemary, Os Inocentes, filme inglês de 1961, Os Pássaros e Psicose, de Hitchcock, O Exorcista, Drácula de Bram Stoker, os monstros da Universal (Frankenstein, A Noiva de Frankenstein, Drácula, O Lobisomem, O Monstro da Lagoa Negra, A Múmia, O Homem Invisível, O Fantasma da Ópera). Séries como American Horror Story (a melhor), The Walking Dead, True Blood. Os livros de Stephen King, Edgar Allan Poe, Henry James. Muitas opções para flertarmos com as trevas.

De Jess Franco a Alfred Hitchcock, os filmes de terror mexem com nosso imaginário, com nossos medos mais recônditos.

Como dizia George Harrison: Beware of darkness






quinta-feira, 21 de abril de 2016

INSTINTO SELVAGEM

(“Você sabe tudo sobre impulso homicida. Não sabe, shooter?”)




Considero INSTINTO SELVAGEM (Basic Instinct), de 1992, o melhor filme noir de todos os tempos. Minha esposa, fã do filme, compartilha da mesma opinião. Bom, se não é o melhor pelo menos podemos colocá-lo na galeria de  obras-primas deste gênero, desde O Falcão Maltês até Pacto de Sangue, Laura, Amar Foi Minha Ruína, Vertigo, Corpos Ardentes e tantos outros.

O termo “noir” surgiu na crítica francesa, numa alusão a uma coleção de livros de histórias criminais, impressos em capas pretas, para denominar um estilo de filmes policiais, em preto-e-branco, produzidos por Hollywood nos anos quarenta. O gênero estendeu-se pelas décadas seguintes e quase sempre seus principais elementos são a fotografia em contraste claro-escuro, gerando sombras que representam a própria psique dos personagens, cenários noturnos, submundo, desesperança, valores morais obscuros, mulheres fatais, um investigador cínico e desiludido que sempre se apaixona pela mulher errada, diálogos ácidos e de duplo sentido, crimes como assassinato e roubo, história intrincada ou mesmo incompreensível.

O diretor holandês Paul Verhoeven, autor de sucessos como Robocop, Conquista Sangrenta, O Vingador do Futuro, A Espiã, etc., manipulou esses elementos criando um filme irresistível, cheio de clima, mistério e sedução, além de transformar Sharon Stone em estrela e adicionar mais um sucesso à carreira de Michael Douglas.

Instinto Selvagem é inspirado livremente no filme espanhol O Matador, de Pedro Almodóvar.

Sharon Stone é Catherine Tramell, uma loira hitchcoquiana no auge de sua beleza, a femme fatale protagonista da cena mais ousada dos filmes noir. Uma cruzada de pernas espetacular que traumatizou os policiais presentes no interrogatório e deve ter derrubado vários saquinhos de pipoca nas sessões de cinema.

Michael Douglas é o detetive Nick Curran, aquele cara que só entra em roubada, um loser do tipo que sempre simpatizamos neste gênero de filme.

É pela relação ambígua entre ambos, antagonismo e desejo irrefreável, que a trama se desenvolve em seus vários desenlaces. Parece que o tempo todo tentamos dizer para Michael “Cai fora. Você vai se fuder”, mas como resistir à beleza de Sharon? Na verdade, queremos que ele continue atrás da gostosa. Assim também funcionava a cabeça de Nick Curran.

Na abertura do filme, ao som da elogiada trilha sonora, quatro nomes de peso responsáveis pela produção aparecem entre os créditos: Jerry Goldsmith, compositor da trilha sonora; Jan de Bont, responsável pela bela fotografia, que viria a ser diretor de sucessos como Twister e Velocidade Máxima; Joe Eszterhas, autor do roteiro e roteirista de Flashdance e Jade; e o próprio diretor Paul Verhoeven.

Cabe destacar a presença no elenco da veterana Dorothy Malone, atriz de clássicos inesquecíveis como À Beira do Abismo (outro grande filme noir), Palavras ao Vento e O Último Pôr do Sol. Ela faz o papel de Hazel Dobkins, uma das amigas de Catherine Tramell. Também no cast a bela Jeanne Tripplehorn, de Waterworld, como a Dr. Beth Garner.

Após a apresentação dos créditos, uma cena de sexo ardente é seguida pela violência de um assassinato. A protagonista é uma loira hot, mas não conseguimos enxergar seu rosto. Catherine Tramell, namorada do roqueiro assassinado, passa a ser a principal suspeita.

Quando o policial Nick Curran e seu parceiro Gus encontram-se pela primeira vez com Catherine, no deck de sua casa de praia, com uma vista paradisíaca para o mar, sabemos que a tela vai pegar fogo, sentimos um clima tal qual notas de jazz, perigosas e sedutoras, preenchendo toda a atmosfera do filme. Sabemos que ninguém será páreo para aquela mulher, nem mesmo o detector de mentiras: “Não hesita, sem variação na pressão ou na pulsação. Ou ela está dizendo a verdade ou nunca vi alguém  igual”, relata o técnico do polígrafo para seus colegas, após o interrogatório da beldade.

Catherine Tramell é psicóloga e escritora. Escreve livros de ficção e faz sua pesquisa entre pessoas cujo passado revelou um instinto assassino e que passam a fazer parte de seus relacionamentos pessoais. No seu entender, Nick Curran se enquadra nesse perfil. Afinal, ele havia sofrido um processo dentro da própria polícia, quando, num tiroteio com criminosos, matara acidentalmente dois turistas. Catherine parece saber tudo sobre a vida de Nick. Quando o policial reaparece em sua casa, inclusive lhe revela que se inspira nele para o personagem de seu próximo livro.

- Então, o que quer perguntar para mim? – prontifica-se Nick com a pesquisa da escritora, enquanto esta prepara um drink.
- O que se sente ao matar alguém? – pergunta Catherine.
- Me conte você – tenta se recompor o policial.
- Eu não sei, mas você sabe.
- Foi um acidente. Eles entraram na linha de tiro.

No desenrolar do jogo que a anfitriã conduz, o detetive lhe pergunta sobre Hazel Dobkins:
- Hazel é minha amiga – responde Catherine.
- Sua amiga acabou com toda a família.
- Sim, ela me ajudou a entender o impulso homicida.
- Pensei que aprendesse isso na escola.
- Só na teoria. Mas você sabe tudo sobre impulso homicida. Não sabe, shooter? Não em teoria, mas na prática. O que aconteceu? Foi tragado por isso? Gostou muito?
- Não sei do que está falando.

Neste momento, o rosto de Catherine está quase encostado no de Nick e sua voz é um convite ao policial, completamente sem ação, a se deixar perder nas próprias confidências:
- Fale-me da coca, Nick. No dia em que acertou os dois turistas. Quanta coca tinha cheirado? Vamos, você pode me contar.
- Não cheirei.
- Sim, cheirou sim. Eles nunca checaram isso, não foi? Mas a Assuntos Internos sabia. Sua esposa também sabia, não é mesmo? Ela sabia o que estava acontecendo. Nicky chegou perto demais do fogo. Nicky gostou daquilo. Foi por isso que ela se matou.

O policial empurra a loira, que continua lhe fitando com um sorriso irônico no canto dos belos lábios. A amiga Roxy chega, outra loira sensual, e enquanto Catherine a envolve em seus braços, o detetive dirige-se irritado para a saída. “Você vai dar um personagem formidável, Nick”, diverte-se a escritora com a reação do cara.

Ao longo de toda a trama policial, desde o início, a teia que Catherine tece sobre Nick e da qual ele não consegue escapar é o âmago do filme. “Ela sabe tudo a meu respeito. Ela está atrás de mim, Gus”, revela a seu parceiro sem conseguir uma explicação. A sensação de perigo parece impelir Nick para as cenas de sexo com a bela suspeita. Qual seria a verdadeira intenção de Catherine Tramell por trás daquela aura de desejo e ameaça? Até a última cena, ou mesmo depois, esta pergunta parece nunca ter resposta.