(“Decência não é para os pobres. Você tem de pagar
por ela.”)
Martin
Ritt (1914 – 1990) foi um grande diretor do cinema americano, com uma produção
significativa dos anos cinquenta aos oitenta. Dirigiu grandes filmes como Testa de Ferro por Acaso, Norma Rae, Hombre, O Indomado, O Mercador de
Almas, O Som e a Fúria, O Espião Que Veio do Frio, entre outros. Transitou
por vários gêneros, mas sua vertente preferida eram os filmes de cunho social,
onde pessoas comuns lutavam contra o Sistema.
Um
de seus melhores filmes, coerente com esta proposta e pouco conhecido no
Brasil, é VER-TE-EI NO INFERNO (The
Molly Maguires), de 1970, sobre a luta dos mineiros de carvão de origem
irlandesa, na Pennsylvania, contra a exploração a que eram submetidos. Inspirado
em fatos reais a partir de 1876, narra a história em que o detetive infiltrado James
McParlan levou à condenação os líderes do grupo terrorista Molly Maguires, que lutavam,
com métodos radicais, por melhores condições para a comunidade de mineiros.
Molly
Maguires foi um grupo ativista que teve sua origem na Irlanda, no século 18,
defendendo os direitos dos pequenos produtores rurais contra os latifundiários,
e voltou a ser representado nos Estados Unidos, na Pennsylvania, entre os
mineiros de origem irlandesa. O porquê do nome do grupo é um mistério. Ao que
parece originou-se de uma citação a uma personagem real da história irlandesa,
Mistress Molly Maguire, símbolo da luta contra a injustiça. “Take that from a son of Molly Maguire!”
passou a ser ouvido antes de algum ataque contra alguma autoridade
representante de um poder opressor. Essa tradição encontrou eco do outro lado
do oceano, no século 19, entre os mineiros imigrantes da Irlanda que viviam em
condições precárias, expostos a doenças e perigos nas minas da Pennsylvania,
explorados de forma brutal pelos magnatas das jazidas de carvão. Os Molly
Maguires, organizados como sociedade secreta, passaram a combater, com métodos
terroristas, o poder que cobria estes trabalhadores com um manto negro de
sofrimento. Os principais eventos referidos no filme entraram para a história
do trabalhismo americano.
Nesta
fita de Martin Ritt temos a presença de dois monstros sagrados do cinema, Sean
Connery, como o líder dos Mollies, Jack Kehoe, e Richard Harris, como o
detetive James McParlan, também de origem irlandesa e que se passava por James
McKenna. E mais a excelente trilha sonora, melancólica e evocativa da origem
dos mineiros, do grande Henry Mancini.
O
filme abre com uma esplêndida sequência de imagens, sem diálogos, acompanhada
pela bela melodia do tema principal, mostrando a rotina do trabalho nas minas
até a operação terrorista que culmina com a explosão que incendeia a tela e
apresenta os créditos da produção.
Na
cena seguinte, o investigador McParlan (Richard Harris) está chegando pela
estação ferroviária ao vilarejo dos mineiros, no Condado de Schuylkill. Sua
missão é conseguir a confiança destes e infiltrar-se entre os Molly Maguires.
Envolve-se numa briga de bar, uma espécie de teste dos mineiros desconfiados,
tudo sob o olhar observador do chefe do grupo secreto, Jack Kehoe (Sean
Connery). McParlan se sai bem no teste, e após uma noite na cadeia, onde é
apresentado ao seu contato, o Chefe de Polícia local, retorna ao bar pela manhã
para reaver sua mala e procurar por uma acomodação.
É
informado sobre um quarto para alugar e apresenta-se, como James McKenna, na
residência de Miss Mary Raines (Samantha Eggar). Esta mora com o pai idoso, um
mineiro aposentado e doente. “Só sobrou
uma. Enterrei minha mulher e dois filhos. Só sobrou ela”, comenta com
McKenna sobre a filha, à mesa de jantar.
McKenna
consegue emprego na mina e logo é apresentado à dura realidade dos colegas. Ao
receber seu primeiro pagamento, o funcionário lhe apresenta um relatório detalhado
sobre sua atividade e custos respectivos. US$ 9,24 pelo carvão extraído menos
US$ 9,00 de descontos pelos equipamentos. Salário total da semana: US$ 0,24. A
expressão do irlandês realmente não é de satisfação.
Aos
poucos McKenna conquista a confiança de Jack Kehoe e seu grupo. É convidado a
integrar a Ancient Order of Hibernians, uma organização legal dos mineiros
irlandeses, e depois, finalmente, entra para os Molly Maguires, uma sociedade
secreta. “Morrer enforcado ou de tanto
tossir nas minas, qual é a diferença?”, argumenta Dougherty (Anthony Zerbe),
um dos companheiros.
A
missão do detetive infiltrado é exterminar os dissidentes, levá-los à forca com
provas. Em sua primeira ação com o grupo deixa claro que o fim vai justificar
os meios em seu intento, manipulando a situação (ou será que uma revolta contra
os patrões das minas estava se manifestando?), mas ao mesmo tempo salva Frazier
(Art Lund), um colega, de ser preso pela polícia.
McKenna
também se sente atraído pela sua jovem senhoria, a bela Mary Raines.
O
investigador desenvolve um sentimento ambíguo em relação aos mineiros: por um
lado solidariza-se com sua causa e até simpatiza com os integrantes dos
Mollies; por outro continua fazendo seu trabalho, pelo qual será bem pago e
impulsionará sua carreira. Em certo momento, o oficial de polícia lhe
questiona: “Não se esqueça de que lado
você está”. McKenna prontamente responde: “Eu sei decidir qual o melhor lado”. Esse sentimento, que
transparece ao longo do filme, também é bem nítido na cena do picnic com Mary
Raines, quando questiona os valores da moça:
-
Você quer decência. E confiança, honra e segurança, tudo do lado da lei. Acha
que os teria de graça? Você viu por si própria. Decência não é para os pobres. Você
tem de pagar por ela, tem que comprá-la. E dá para comprar a lei também, como
se compra uma fatia de pão.
-
Ainda há o certo e errado - responde Mary.
-
Há o que você quer e o quanto tem de pagar.
Jack
Kehoe, o chefe dos Mollies, tinha um entendimento bem claro sobre seu contexto
social. Quando Raines, o pai de Mary, agoniza em seu leito, o padre da
comunidade (Philip Bourneuf), que está lhe assistindo, tem oportunidade para
uma conversa privada com Jack. Sabe de suas atividades ilegais e tenta
demovê-lo do caminho da violência. O mineiro responde, pesaroso por mais uma
morte e o semblante cansado de lutar mas sem ter outra alternativa:
-
Tentei do seu modo. Não me ajudou em nada.
-
Há perdão no fim do caminho – retruca o pároco.
-
Pecado no começo e perdão no fim, desde que abaixemos a cabeça no meio. Não
posso aceitar isso, padre.
O
padre ainda lhe revela que existe um informante entre eles. Conseguiu essa
informação com o arcebispo, mas não sabe quem é. A expressão de Kehoe é mais de
decepção que surpresa.
No
velório de Raines, Jack não resiste. Embora dissesse que não bebia, nesta noite
não se reprime e certa hora aproxima-se do corpo do velho amigo:
-
Tomaram todo o resto. Nem mesmo lhe restou um paletó para ser enterrado!
-
Não é certo enterrar alguém sem roupa adequada – completa seu companheiro
militante Frank Andrew (Anthony Costello).
-
Não, não é. E ele terá um paletó. Devem muito a ele – Jack assume um ar
decidido.
O
que vem na sequência é uma das melhores cenas do filme. Jack e Frank, irritados,
saem à rua e dirigem-se ao armazém do próprio dono das minas. Acompanhados pela
calada da noite, mais atrás vêm McKenna e o grupo de populares do velório. Jack
arromba a porta do estabelecimento e Frank pega um paletó para Raines. Kehoe
está saindo mas, para um pouco, olha para as pessoas, e...what a hell!, pega
o resto das roupas e, do parapeito da entrada da loja, joga para o povo abaixo
que observa da rua. A seguir faz o mesmo com as roupas femininas. A um canto do
armazém, McKenna observa e empunha uma pá, parece que o sangue lhe sobe à
cabeça, uma revolta sufocada força passagem e dá lugar a uma ira que se solta
enquanto quebra os objetos das prateleiras e depois tudo que encontra pela
frente. Jack, que se preparava para sair com uma pequena pilhagem, interrompe o
que fazia, seu rosto franze, e acompanha McKenna em sua fúria. Em seguida
despeja querosene pela loja e ambos ateiam fogo em utensílios de madeira.
Labaredas iluminam os dois homens que se abraçam, riem e exultam: “Vamos
mostrar a eles que ainda estamos vivos!”
A
esta altura, Jack já sabia que havia um informante entre eles. Obviamente só
poderia ser McKenna – seria o único suspeito. No entanto continuou fazendo o
que achava que deveria ser feito. Como se não houvesse outra opção. De certa
forma parecia que tudo seguia um curso natural, inevitável. Na última operação ele e Frank são presos vítimas de uma emboscada. Olha para onde
McKenna deveria estar, vigiando, e ele não está mais lá. Neste momento tem
certeza de quem era o delator. Quando o detetive é convocado para depor no
tribunal contra eles e revela seu nome verdadeiro como James McParlan, Jack
Kehoe não demonstra surpresa, ao contrário de seu colega Dougherty, que tem que
ser contido pelos policiais.
McParlan
visita Kehoe na prisão, onde espera a data do enforcamento. O investigador comenta
que não sabia como seria recebido, mas Jack está calmo, senta em sua cama e o convida
a acomodar-se num banquinho no canto da cela. Depois de perguntar ao condenado
se tem tudo que precisa, McParlan questiona:
-
Ainda crê que pode resolver algo com pólvora?
-
É o que veio perguntar? – indaga Jack.
-
Só curiosidade. Quero dizer, acha mesmo que poderia ter vencido? Mas então, por
quê?
-
Você sabe tanto quanto eu. Trabalhou lá. Você ficaria indiferente?
-
Eu não ficaria. Teria ido embora.
-
Onde acharia algo diferente? Há sempre pressão de baixo e de cima. Quem
pressiona mais é o que conta.
-
Eles sempre vencem.
Jack
retruca explicando a própria essência da militância social. A conscientização
paulatina, pedra por pedra, corações e mentes um a um. O idealismo superando a
própria consciência da morte:
-
Mas ganhamos um pouco. Não muito mas um pouco. Suficiente para pressionar os
bastardos um pouco. E você nos ajudou. Você mesmo pressionou uma pequena parte.
-
Fazia parte do trabalho.
-
Voltando para ajudar Frazier. Fez porque quis.
-
Não tenha tanta certeza. Você me respeitou mais.
-
Você gostou de bater no policial.
-
Sim, devo admitir...
-
E por fogo no armazém. Não trabalhou só para eles.
-
Foi um belo incêndio – sorri McParland.
-
Foi um homem naquela hora.
Depois
um pequeno silêncio se faz entre os dois homens. McParlan volta à sua indagação
principal:
-
Por que não parou, Jack? Tentei fazê-lo parar.
-
Eles iriam nos pegar cedo ou tarde.
Jack
ainda conta sobre um plano que tinha. Uma ação que seria espetacular.
-
Você mostrou o que queria, Jack. Não se arrependeu. Usou a pólvora que tinha –
McParlan não esconde sua simpatia.
Jack
escolhe as palavras:
-Sim.
Mas você não veio aqui conversar. Nem fazer perguntas ou dizer adeus.
-
Então apenas deixemos claro por que eu vim.
-
Veio para ser perdoado.
-
Você não é um padre, Jack.
-
Gostaria de se livrar do que fez.
-
Não sou sentimental.
-
Você não quer perdão. Pode conseguir isso de uma mulher. Punição é o que você
quer. Acha que a punição vai libertá-lo. Talvez seja meu coração cristão. Nunca
pude ver um homem carregando uma cruz.
Dito
isto Jack salta no pescoço de McParlan e o pressiona contra a parede. Os
guardas entram um pouco depois dominando o preso e libertando o ofegante
investigador. Jack Kehoe, no chão, dirige-se a McParlan:
-
Está livre agora? Eu o libertei para uma vida nova?
-
Eu devo a você – responde o detetive ainda retomando o fôlego.
-
Você nunca será livre – continua o mineiro. Nenhuma punição deste lado do
inferno vai libertá-lo do que fez.
-
See you in hell – despede-se McParlan.
Corajoso,
ousado, envolvente e brilhantemente filmado, The Molly Maguires merece ser
redescoberto. “Deste lado do inferno” nem sempre conseguimos assistir a um
filme tão interessante e com tal qualidade.
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