(“Eu sempre achei que seria melhor ser um alguém falso que um ninguém verdadeiro.”)

Vivi
a experiência de ser proprietário de videolocadora. Eu e minha mulher
atendíamos no balcão. Foi uma grande escola. Sobre cinema e sobre a espécie humana.
Minha esposa gosta de comentar que aprendeu “a conhecer as pessoas”.
Certa
ocasião duas amigas se encontraram em nossa loja. Depois dos cumprimentos, uma
delas, uma senhora de mais idade, perguntou: “E então? Tens ido aos Estados
Unidos?” A outra, uma mulher interessante, rica, gay, bela e charmosa
respondeu, com uma classe que sempre nos impressionava: “Não. Prefiro a Europa.
Estou apaixonada por Positano. América já não me seduz.” Achamos o máximo
aquela resposta.
O TALENTOSO RIPLEY (The Talented Mr.
Ripley), de 1999, um clássico do
final do século XX, direção de Anthony Minghella, é um filme sobre americanos
para quem “América já não seduz”.
É
também um filme sobre quem despreza. Cate Blanchett, no papel de Meredith Logue,
filha de um rico industrial do ramo têxtil, explica melhor conversando com Matt
Damon (Tom Ripley fazendo-se passar por Dickie Greenleaf) na escadaria da Plaza
España, na Roma dos anos 50: “A verdade é que, se você teve dinheiro a vida
toda, mesmo desprezando-o, e nós desprezamos, concorda? você só fica à vontade
entre gente que tem e despreza.”
Além
de Meredith, temos uma turma de personagens que também desprezam, consumindo na
Itália, sem nenhum pudor, as mesadas enviadas pelos pais ricos: Dickie
Greenleaf (Jude Law), filho de um milionário do ramo naval responsável por
contratar Tom Ripley, como suposto amigo do filho, para convencer Dickie a
voltar para a América; Marge Sherwood (Gwyneth Paltrow), escritora, namorada do
rapaz milionário; e Freddie Milles (Philip Seymour Hoffman), amigo de Dickie, bon
vivant, especialista em gastar mesadas.
No
meio deles está Tom Ripley (Matt Damon). Esse não despreza; pelo contrário,
mataria por isso.
Um
dos principais méritos do filme, além de sua qualidade, é apresentar a obra da
grande escritora norte-americana Patricia Highsmith e seu principal personagem
de vários livros, o anti-herói Tom Ripley, um sujeito com muitas habilidades e
moral tanto enviesada quanto particular.
Essa
é a segunda adaptação de O TALENTOSO MR.
RIPLEY, de Highsmith. A primeira foi O
SOL POR TESTEMUNHA (Plein Soleil), filme francês de René Clément, de 1960,
com Alain Delon no papel de Tom Ripley. Outros bons filmes também exploraram o
universo de Highsmith, com ou sem Ripley. Em especial Pacto Sinistro (Strangers on a Train), de Alfred Hicthcock, e o
recente Carol, de Todd Haynes, estrelado
por Cate Blanchett, baseado no livro onde a própria autora cria uma ficção
baseada em experiências pessoais.
The Talented Mr. Ripley é a obra mais famosa de Patricia Highsmith e onde Tom
Ripley faz sua estreia, livro que elegi como integrante do meu rol afetivo de
leituras, aqueles que são nossos favoritos. A escritora é um dos maiores nomes
da literatura policial psicológica e seu talento extrapola os limites do
gênero. Seu personagem emblemático, o amoral Tom Ripley, move-se por um
universo criado pela escritora onde claustrofobia
e apreensão são conceitos sempre
presentes, conforme observou o renomado escritor inglês Graham Greene, outro
mestre da literatura de suspense. Por esses caminhos Highsmith vai a fundo na
investigação do lado obscuro da alma humana. Aqueles recônditos, além da moral,
onde nossas motivações, às vezes confusas, às vezes contraditórias, convergem
para um único objetivo: nós mesmos. Sombrio, mas humano, sincero. Existe
sinceridade maior que o egoísmo?
Assim
é Tom Ripley. Um cara que pensa em se dar bem, não importam os meios. Em O Talentoso Ripley ele se move entre
jovens burgueses ricos e desocupados, admirando-os e invejando-os, e ao mesmo
tempo cresce um sentimento de revolta por considerar que aqueles filhinhos de papai,
que passam depois a recusar sua companhia, não merecem aquela vida rica de ócio
e prazer na Europa, alheios à luta pela sobrevivência na América, e que ele
sim, ele, Tom Ripley, com suas habilidades, é que mereceria aquele estilo de
vida. Ele saberia valorizar e deveria ter nascido para aquilo. Como a vida é
injusta, como não é ele o privilegiado? “Eu sempre achei que seria melhor ser
um alguém falso que um ninguém verdadeiro”, repete para si mesmo, justificando
a correção radical que talha com enorme astúcia, talento e fúria contra a
injustiça do mundo.
No
filme de Anthony Minghella, as locações não são na Positano de nossa amiga da
locadora, mas na paradisíaca e fictícia Mongibello, costa da Sicília, mais
Roma, Veneza e Nova York. A versão do diretor inglês captura o espírito do
livro, o pensamento individualista e contraditório de Ripley, sua ambição, o
clima de tensão que se estabelece aos poucos e acentua-se após o evento
drástico que altera a narrativa, assim como a elegância da ambientação e as
personalidades dos protagonistas, desenvolvidas sem decepcionar a profundidade conferida
por Highsmith. O filme é muito bom, assiste-se sempre com muito prazer.
A
versão de Minghella, como praticamente em quase todas as adaptações das páginas
da literatura para as telas, tem diferenças em relação ao romance, mas é fiel à
essência da obra. Algumas dessemelhanças são mais significativas. No filme
Ripley é assumidamente gay. No livro, o relacionamento entre os dois
personagens principais, Ripley e Dickie Greenleaf, é pontuado por um viés
homossexual que nunca se confirma, fica sempre nas entrelinhas (assim como em Pacto Sinistro); e no caso de Tom Ripley
ele sofre por não assumir, por não entender direito os sentimentos que nega com
veemência. Na sequência do barco, momento-chave da narrativa, Minghella a
apresenta como o clímax violento de um desentendimento, e depois, a troca de
identidades é colocada como uma possibilidade aproveitada por Tom; no livro a
escritora expõe a irritação, a revolta (com o mundo, com Dickie, com a rejeição)
e a premeditação que surge como um insight perverso e brilhante.
O
filme centra-se principalmente na ambição de Ripley, na troca de identidades,
no desejo do personagem de ser “alguém” a qualquer custo, o que aparece
sugerido em cenas da primeira parte, como quando ele finge ser Dickie Greenleaf,
ao conhecer Meredith Logue, e depois ao experimentar as roupas do próprio, cena
comum no filme e no livro. Na obra original, Patricia Highsmith enfatiza o
caráter enviesado de Tom Ripley e os caminhos tortuosos por onde sua mente o
leva. A psicologia do personagem é dissecada como se um cirurgião observasse o
fluxo do sangue correndo pelas veias abertas de um cérebro implacável, inquieto,
contraditório, pulsante, intenso, sofrido, sensível e sobretudo empenhado no
que é melhor para si.
Em
O Sol Por Testemunha, René Clément
filma uma versão bem mais livre em relação ao romance original. Um bom policial
francês, coerente com a essência do livro em que se baseou. Mas tanto o filme
de Clément quanto o de Minghella têm um ponto em comum significativo: os finais
são moralistas. No primeiro Ripley é desmascarado pela justiça institucional;
no segundo é castigado por sua angústia e pelos caminhos infelizes que seus
crimes o levam. Já no romance de Highsmith, ao perceber no final que não será
pego, Tom Ripley está mais esfuziante do que nunca, comemorando seu sucesso e
solto para novas aventuras nos livros que viriam a seguir.
O
mundo particular de Patricia Highsmith, nas páginas ou nas telas, é sempre uma
experiência pela qual não se passa incólume. A capacidade de criar uma
realidade própria e ao mesmo tempo universal é marca dos grandes escritores. Some-se
a criação de um personagem como Tom Ripley, ícone da literatura policial, representação
do que possuímos de mais humano e assustador, e temos a prova incontestável da
genialidade da escritora norte-americana.
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