(“Somente necessito de um pouco de sol que a você sobra.”)

(Photo by Consuelopumara - Own
work)
O HOMEM AO LADO, de 2009, direção de Mariano Cohn e Gastón Duprat, é
um exemplo representativo do vigor da produção cinematográfica na Argentina. Um
brilhante filme sobre inversão de expectativas. E uma alegoria sobre as
sociedades divididas em classes sociais e a interação contraditória entre elas,
especialmente quando mundos diferentes são colocados em confronto.
Destaque
especial para as elogiadas interpretações de Rafael Spregelburd, como Leonardo,
e Daniel Aráoz, como Víctor.
Uma
família de intelectuais da classe média, ele, Leonardo, professor de design,
ela, Ana, professora de ioga, mais a filha pré-adolescente e a empregada
doméstica, moradores da Casa Curutchet, em La Plata, são surpreendidos pelo
vizinho proletário, Víctor, quando este começa a abrir uma janela na parede contígua
à Casa, com o argumento que necessita de sol naquele lado de sua residência. No
entender dos chamados burgueses isso configuraria uma invasão de sua
privacidade. Mas aquele que consideram um “troglodita” está determinado em seu
objetivo e mostra-se insensível aos argumentos de que sua empreitada é ilegal.
Com o conflito um toma consciência do outro.
A
Casa Curuchet, clássico do Modernismo, projetada em 1948 pelo lendário
arquiteto Le Corbusier, é um personagem a parte no filme, com sua liberdade
espacial e transparência, sua implantação e diálogo com o entorno, seu desenho
geométrico, jogo de cheios e vazios e planos horizontais e verticais. Conforme
depoimento numa cena em que um professor de arquitetura apresenta a edificação
a seus alunos, ela é “A única casa que Le Corbusier projetou em toda América.
Uma pequena obra-prima que combina simplicidade, conforto, harmonia...” Além de
oferecer uma ambientação espetacular ao filme, a Casa representa o status
social da família classe média e sua pretensão intelectual, o chamado bom
gosto.
Uma
família culta e aparentemente civilizada. O aparentemente
é o principal tema do filme.
Do
outro lado do conflito está o vizinho brega, o considerado mau gosto.
Conforme
a filósofa Marcia Tiburi em seu excelente livro Ridículo Político, ao citar O
Homem ao Lado, “Os regimes de comportamento ético e estético de cada
personagem expressam-se em tensão. [...] O filme mostra que julgamos pelas
aparências e quase sempre nos enganamos redondamente, não porque as aparências
enganem, mas porque não olhamos com cuidado.”
Fazendo
a ressalva que é aconselhável assistir ao filme antes de continuar a leitura,
Marcia Tiburi é precisa em sua análise. Adianto que o final é surpreendente,
mas os diretores Cohn e Duprat aos poucos nos fornecem pistas sobre as
aparências não serem bem o que parecem.
Não
olhamos com cuidado, mas algumas cenas vão revelando o perfil de Leonardo, o “respeitado”
intelectual, e preparando o desfecho inusitado: a cantada na aluna, a grosseria
com o tio doente mental de Víctor, o desconforto e falta de consideração para com
os presentes que receberam do vizinho indesejável, a arrogância com que trata
os alunos, o preconceito de classe explicitado na conversa com amigos, a
intransigência da esposa, um momento de impaciência com a própria mulher, o
voyeurismo dirigido à janela do vizinho (exatamente o que desconfiavam deste).
Interessante
como o primeiro diálogo entre os dois personagens principais, Leonardo e
Víctor, já traz indicação do que seria sugerido ao longo do filme. Leonardo, da
janela de sua casa, contendo sua irritação, tenta argumentar com Víctor, que
surge no buraco da parede deste, que ele não pode abrir aquela janela. Este responde, como um
puxão de orelhas no interlocutor sem educação: “Vamos por partes. Boa tarde. Eu
sou Víctor. A quem tenho o prazer?” Como se o burguês não considerasse seu
vizinho proletário digno de um cumprimento, dada sua inferioridade social. Naquele
momento, já se insinuava a arrogância do personagem intelectual classe média.
Pelo
lado do personagem bronco, reparamos depois de um tempo que sua postura, apesar
da falta de polimento, é sempre mais amistosa, quase querendo iniciar uma
amizade. Defende o tio deficiente quando o julgou ofendido, oferece presentes e
flores, apresenta depois uma bela namorada e consegue interagir com a filha do
casal burguês, o que o próprio pai não conseguia. Apesar de no início parecer
ameaçador revela-se depois mais generoso e afetivo.
O
final cai como um soco em nossa sensibilidade distraída e identificada com
aqueles que são detentores da máscara de respeito e bom gosto. Inverte nossa
expectativa e inverte nossos valores. O fetichismo das imagens em
contraste com a arquitetura-verdade de Le Corbusier e do Modernismo. Apesar dos sinais, na realidade nos recusávamos
a enxergar naqueles que julgamos nossos pares atitudes distintas das aparências
que a classe média cultiva para si. Aparências tão hipócritas quanto
legitimadoras do status quo e suas diferenças de classes.
O Homem ao Lado é um grande filme que nos confronta no espelho.
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