domingo, 13 de outubro de 2019

66 FILMES PARA VER DEPOIS DE MORRER

(Pequena lista afetiva, em ordem cronológica)





1. O GABINETE DO DR. CALIGARI, de Robert Wiene, 1920.
Marco do Expressionismo Alemão.

2. NOSFERATU, de F. W. Murnau, 1922.
O vampiro mais aterrorizante da história do cinema.

3. FRANKENSTEIN, de James Whale, 1931.
A principal referência entre tantas versões do romance de Mary Shelley.

4.
 MONSTROS, de Tod Browning, 1932.
Apesar da polêmica por utilizar deficientes físicos como atores, Freaks ganhou destaque como filme de terror e conteúdo social.

5. KING KONG, de Merian C. Cooper e Ernest B. Schoedsack, 1933.
     Ainda hoje, no gênero aventura exótica e monstro, no campo da nossa memória afetiva, não há nada que supere o velho King Kong e suas cenas antológicas.

6.
 O HOMEM INVISÍVEL, de James Whale, 1933.
Melhor versão do romance de H. G. Wells, com ótimos efeitos especiais. 

7. SANGUE DE PANTERA, de Jacques Tourneur, 1942.

     Primeiro Cat People, charmoso, sombrio e irresistível.

8. 
 DIAS DE IRA, de Carl Theodor Dreyer, 1943.
 Obra-prima do grande diretor dinamarquês Carl Theodor Dreyer sobre caça às bruxas. Estética apuradíssima desvendando a alma dos personagens. 

9.
 O SOLAR DAS ALMAS PERDIDAS, de Lewis Allen, 1944.
Ótimo filme e um verdadeiro compêndio de fenômenos espíritas. 

10.
 O MONSTRO DA LAGOA NEGRA, de Jack Arnold, 1954.
Em plena selva amazônica nos deleitamos com a cena de nado sincronizado mais icônica do cinema. Filme que inspirou A Forma da Água, de Guillermo del Toro. 

11.
 O MENSAGEIRO DO DIABO, de Charles Laughton, 1955.
Duas crianças perseguidas por um assassino frio e dissimulado. Pode-se imaginar algo mais assustador? 

12.
 VAMPIROS DE ALMAS, de Don Siegel, 1956.
Superclássico. Paranoia coletiva como alegoria política. 

13. A CASA DOS MAUS ESPÍRITOS, de William Castle, 1959.
Vincent Price e um jogo muito peculiar.

14. A PEQUENA LOJA DOS HORRORES, de Roger Corman, 1960.
O mestre Roger Corman e Jack Nicholson numa genial comédia de humor negro.

15. PSICOSE, de Alfred Hitchcock, 1960.
Obra-prima. Psicologia, suspense, edição, trilha sonora, etc. (evite chuveiros com cortinas em motéis de beira de estrada).

16. OS INOCENTES, de Jack Clayton, 1961.
      Filme de extrema qualidade. O mais aterrorizante que já vi. Versão do romance A Volta do Parafuso, de Henry James.

17. O QUE TERÁ ACONTECIDO A BABY JANE?, de Robert Aldrich, 1962.
Bette Davis versus Joan Crawford num grande momento do terror psicológico.

18. AS TRÊS MÁSCARAS DA MORTE, de Mario Bava, 1963.

      Um dos principais filmes de Mario Bava, mestre do suspense e terror italianos.

19. OS PÁSSAROS, de Alfred Hitchcock, 1963.

      O melhor filme de monstros (estes pequenos seres alados).

20. À MEIA-NOITE LEVAREI SUA ALMA, de José Mojica Marins, 1964.

      Zé do Caixão em grande forma, em alopração impressionante.

21. O SEGUNDO ROSTO, de John Frankenheimer, 1966.

      Melhor filme de dupla identidade. Impressionante crítica social.

22. A DANÇA DOS VAMPIROS, de Roman Polanski, 1967.
Melhor comédia de terror.

23. A NOITE DOS MORTOS-VIVOS, de George Romero, 1968.
Praticamente o marco inicial dos filmes de zumbis. E ainda hoje o melhor.

24. O BEBÊ DE ROSEMARY, de Roman Polanski, 1968.
Um dos melhores filmes de terror de todos os tempos. Grande momento de Polanski. De gelar a espinha. Insegurança, impotência, suspeitas, medo, pavor.

25. MARQUÊS DE SADE: JUSTINE, de Jess Franco, 1969.
Jess Franco e sua interpretação peculiar do Marquês de Sade.

26. A CASA DA NOITE ETERNA, de John Hough, 1973.
Ótimo terror inglês. Assustador, inteligente e sempre tenso. O ataque do gato preto é uma cena antológica do filme.

27. INVERNO DE SANGUE EM VENEZA, de Nicolas Roeg, 1973.
Sombrio, misterioso, melancólico e belo.

28. O EXORCISTA, de William Friedkin, 1973.

      Referência entre os maiores clássicos de terror, foi um dos primeiros a explorar a possessão demoníaca no cinema. Ainda hoje aterrorizante.

29. O HOMEM DE PALHA, de Robin Hardy, 1973.
Brega, sensual, perverso e irresistível.

30. PICNIC NA MONTANHA MISTERIOSA, de Peter Weir, 1975.
Clássico australiano. Bela fotografia emoldurando um filme elegante e misterioso.

31. TUBARÃO, de Steven Spielberg, 1975.
Marco dos filmes de ataques de monstros. Cinema puro.

32. CARRIE, A ESTRANHA, de Brian De Palma, 1976.
Genial adaptação da obra de Stephen King sobre o rito de passagem da adolescência. Existe alguma fase da vida mais aterradora?

33. SUSPIRIA, de Dario Argento, 1977.
Assassinatos e criatividade.

34. A VINGANÇA DE JENNIFER, de Meir Zarchi, 1978.
Violência e feminismo. Não conseguimos desviar o olhar. Rendeu várias refilmagens.

35. O DESPERTAR DOS MORTOS, de George Romero, 1978.
Zumbis versus sociedade de consumo. Masterpiece.

36. O ILUMINADO, de Stanley Kubrick, 1980.
A ópera do terror orquestrada pelo gênio de Stanley Kubrick.

37. VESTIDA PARA MATAR, de Brian De Palma, 1980.
Brilhante releitura de Psicose.

38. A MORTE DO DEMÔNIO, de Sam Raimi, 1981.
Criatividade, inovações técnicas e ameaças demoníacas. Suspense e terror em alta tensão.

39. GRITO DE HORROR, de Joe Dante, 1981.
Lobisomens, sátira social e maquiagem impressionante. Junto com Um Lobisomem Americano em Londres, de John Landis, do mesmo ano, estabeleceram um novo parâmetro para os filmes com as criaturas da lua cheia.

40. A MARCA DA PANTERA, de Paul Schrader, 1982.
Refilmagem do primeiro Cat People. Interessante, cheio de estilo e com Nastassja Kinski no auge da beleza.

41. O ENIGMA DE OUTRO MUNDO, de John Carpenter, 1982.
Antártida, claustrofobia e paranoia. Grande filme.

42. FORÇA SINISTRA, de Tobe Hooper, 1985.
Ficção científica, vampiros alienígenas e a beleza mortal de Mathilda May ameaçando o planeta. Cult movie.

43. CORAÇÃO SATÂNICO, de Alan Parker, 1987.
Robert De Niro diabólico, Mickey Rourke em seu auge, feitiçaria e assassinato em New Orleans. Imperdível.

44. ELES VIVEM, de John Carpenter, 1988.
A ideologia desmascarada. Brilhante.

45. DRÁCULA DE BRAM STOKER, de Francis Ford Coppola, 1992.
Drácula em superprodução. A versão mais fiel ao livro e a mais fascinante.

46. UMA SIMPLES FORMALIDADE, de Giuseppe Tornatore, 1994.
Giuseppe Tornatore, Roman Polanski, Gérard Depardieu e um estranho interrogatório. Precisa mais?

47. SEVEN, de David Fincher, 1995.
Sombrio e perturbador. Os sete pecados capitais e a caçada a uma mente tão macabra quanto perversa.

48. PÂNICO, de Wes Craven, 1996.
Genial sátira e autocitação do gênero.

49. ADVOGADO DO DIABO, de Taylor Hackford, 1997.
Vaidade e a interpretação mais demoníaca do cinema.

50. O SEXTO SENTIDO, de M. Night Shyamalan, 1999.
Redefiniu o gênero. "I see dead people."

51. ECLIPSE MORTAL, de David Twohy, 2000.
Vin Diesel contra criaturas carnívoras num planeta inabitado. Ótimo filme. Suspense em alta tensão.

52. OS OUTROS, de Alejandro Amenábar, 2001.
Belo conto fantástico, assustador e misterioso, sobre mulher (Nicole Kidman) e dois filhos vivendo numa mansão isolada no final da Segunda Guerra. Final surpreendente.

53. RESIDENT EVIL (1 ao 6), de Paul W. S. Anderson e outros, 2002/16.
Guilty pleasure. E Milla Jovovich.

54. ANJOS DA NOITE (1 ao 5), de Len Wiseman e outros, 2003/17.
Guilty pleasure. E Kate Beckinsale.

55. JOGOS MORTAIS, de James Wan, 2004.
Baixo orçamento. Perversidade. Suspense psicológico. Roteiro e direção brilhantes. Marco do subgênero slasher.

56. A CHAVE MESTRA, de Iain Softley, 2005.
Arrepiante. Kate Hudson envolvida numa estória de possessão, New Orleans e magia negra. Terror e diversão garantidos.

57. REJEITADOS PELO DIABO, de Rob Zombie, 2005.
Uma trupe de maníacos ensandecida e sanguinária.

58. 30 DIAS DE NOITE, de David Slade, 2007.
Terror baseado em quadrinhos. Um Alasca sufocado por vampiros durante trinta dias de desespero.

59. ATIVIDADE PARANORMAL, de Oren Peli, 2007.
Falso documentário. Falso realismo. Mas não falso medo.

60. EU SOU A LENDA, de Francis Lawrence, 2007.
Will Smith em ótimo filme de ação e suspense. Pós-apocalipse e zumbis. Quase sem diálogos.

61. CISNE NEGRO, de Darren Aronofsky, 2010.
O aterrorizante mundo do ballet clássico.

62. MELANCOLIA, de Lars von Trier, 2011.
O melhor filme de fim do mundo.

63. SOB A PELE, de Jonathan Glazer, 2013.
Scarlett Johansson deslumbrante e letal. Fábula existencial sobre alienígena.

64. A BRUXA, de Roger Eggers, 2015.
Filme norte-americano produzido por brasileiros. No século XVII, colonos expulsos de sua comunidade na Nova Inglaterra, EUA, enfrentam ameaça sombria. Apavorante. Ótimo drama fantástico.

65. CORRA!, de Jordan Peele, 2017.
Possessão e crítica social. O terror engajado na luta de classes e no front contra os preconceitos raciais.

66. MÃE!, de Darren Aronofsky, 2017.
Terror e referências bíblicas. O filme mais instigante e desnorteante que já assombrou uma tela de cinema.






terça-feira, 24 de setembro de 2019

NETTO PERDE SUA ALMA

(“Nós lutávamos por ideias.”)





Desde os pioneiros Mário Peixoto e Humberto Mauro, passando pelo tempo das produções do Estúdio Vera Cruz, na década de 50, o período do Cinema Novo, nas décadas de 60 e 70, e a fase dos grandes diretores como Glauber Rocha, Nélson Pereira dos Santos, Rogério Sganzerla e Walter Hugo Khouri, o cinema brasileiro sempre foi um polo interessante no hemisfério sul. Enfrentou dificuldades no Governo Collor mas recuperou-se e ressurgiu com títulos de destaque internacional como O Quatrilho, O Que É Isso, Companheiro?, Central do Brasil, Cidade de Deus e Tropa de Elite. Nos últimos anos apresentou obras-primas como Rasga Coração, de Jorge Furtado, Nise - O Coração da Loucura, de Roberto Berliner, Que Horas Ela Volta?, de Anna Muylaert, Aquarius e Bacurau, de Kleber Mendonça Filho, entre outras.

O cinema gaúcho, em particular, que se destacou no formato super-8 e depois marcou presença no longa, viveu um grande momento no lançamento de NETTO PERDE SUA ALMA, de Beto Souza e Tabajara Ruas, em 2001.

Na época, assisti ao filme no Guion Center, cinema com programação diferenciada no Centro Comercial Olaria, um pequeno shopping a céu aberto em Porto Alegre. Na saída, eu e minha esposa encontramos Beto Souza (somos amigos desde o tempo da faculdade de Arquitetura) num bar dentro do mesmo shopping e conversamos sobre o filme. Sem dúvida, foi uma experiência inusitada em minha vida. Na saída de uma sessão de cinema, encontrar e discutir o filme com o próprio diretor!

Conforme Beto havia me explicado, Tabajara Ruas, o autor do romance histórico que inspirou o filme, foi responsável pela direção dos atores, enquanto o próprio Beto Souza se responsabilizou pelo processo de filmagem propriamente dito.

As premiações conquistadas pelo longa são atestados de sua qualidade: Melhor Filme – Júri Popular, Melhor Montagem (Ligia Walper), Melhor Trilha Sonora (Celau Moreira) e Prêmio Especial do Júri no Festival de Gramado; Melhor Roteiro (Tabajara Ruas, Rogério Ferrari, Ligia Walper, Fernando Marés e Beto Souza), Melhor Direção de Arte (Adriana Nascimento Borba), Melhor Ator Coadjuvante (Sirmar Antunes) e Prêmio Especial do Júri no Festival de Recife; Melhor Ator (Werner Schünemann) e Melhor Direção de Arte no Festival de Brasília; Melhor Fotografia (Roberto Henkin) no Festival de Cinema de Huelva / Espanha; Melhor Filme – Diretor Estreante no Festival de Cinema de Trieste / Itália; e indicações para Melhor Ator e Melhor Roteiro Adaptado no Grande Prêmio Cinema Brasil.

Épico gaúcho, e ao mesmo tempo um drama intimista, Netto Perde Sua Alma conta as recordações e angústias do general Antônio de Sousa Netto (Werner Schünemann), em recuperação num hospital em Corrientes, Argentina, sobre sua participação na Revolução Farroupilha e na Guerra do Paraguai, e seu romance com a bela estancieira Maria Escayola (a atriz uruguaia Laura Schneider), durante seu autoexílio em Piedra Sola, no Uruguai. Concomitante com as lembranças provocadas pela visita do amigo sargento Caldeira (Sirmar Antunes), ex-escravo e companheiro de batalhas, o oficial enfermo precisa lidar com eventos sinistros no próprio hospital, que exigirão dele uma postura radical coerente com seus princípios. Netto encarna o herói clássico, mas não isento de contradições.

Netto não só é um dos melhores filmes gaúchos, como também um dos principais filmes brasileiros sobre conflitos históricos e pessoais. E o conflito racial é abordado pela figura do jovem personagem Milonga (Anderson Simões), alistado no Corpo de Lanceiros Negros, posteriormente julgando-se traído pelos ideais em que acreditava.

Além da narrativa clássica de fundo histórico, sempre um prazer quando a serviço de uma boa estória, o fascínio do épico gaúcho vem de uma inspirada produção como um todo. Direção, roteiro, interpretações, direção de arte, figurino, montagem, fotografia, música. Tudo é desenvolvido com rara competência e entrosamento. E sobretudo a força das imagens criativas, expressivas e alegóricas.

Assim como David Lean filmou o deserto em Lawrence da Arábia, Beto registrou as paisagens e fauna gaúchas com apurado requinte técnico, como metáfora para o sonho de Netto, aquelas extensas pradarias que poderiam vir a ser um novo país, uma democracia, em alternância com as cenas intimistas e em contraste com o clima sombrio e amargo das recordações no hospital de Corrientes.

Netto Perde Sua Alma não deixa também de ser um western. Uma cena em particular lembra Sergio Leone: o duelo no córrego entre Netto e o capitão Teixeira contra os quatro ladrões de cavalos.

Duelos são representações e sínteses de conflitos. Em Netto, os conflitos são a própria essência do filme. São sociais e pessoais. Vingança, traição, frustração, revolta, idealismo, impotência, ingenuidade. Para dar vida ao general Netto, um personagem no centro desse turbilhão, o carisma de Werner Schünemann foi fundamental. Num dos bons momentos do filme (que são muitos) ele conversa com o sargento Caldeira no hospital à noite, numa cena tão sombria quanto as almas desiludidas daqueles homens: “Nós lutávamos por ideias”, conta o general referindo-se à Revolução Farroupilha. Quanto à Guerra do Paraguai, “atrai mercenários vindos de toda parte, pagos a peso de ouro. Agora se luta por ouro, sargento!”

Netto é atormentado por seus demônios. No cenário da igreja e imediações em Triunfo, após a derrota farroupilha (o recurso da bandeira que se transforma em farrapos é uma metáfora interessante), durante uma das principais cenas cujo desfecho vai sendo apresentado à medida que se alternam as figuras de Milonga e Netto, o general argumenta com um colega de armas porque está se retirando para o Uruguai ao invés de continuar atuando politicamente: “Nas conversas pelo acordo de paz, todos os meus pontos de vista foram vencidos. [...] O que me corrói é o destino dos negros que lutaram pelos republicanos. Só eles perderam.” Milonga também pensava assim.

Em meio ao sangue, dor e sentimento de fracasso, há espaço para o lirismo do romance entre Netto e a senhorita Maria nos verdes campos do Uruguai. Que a guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai iria interromper.

A última cena, poética e soturna, é o desfecho brilhante condizente com o padrão elevado de criatividade e qualidade de toda a produção. Uma cena “bergmaniana”, conforme o crítico Luiz Carlos Merten. À beira de um rio denso emoldurado pela noite e névoa, Netto despede-se do amigo Caldeira: “Toda essa gente que eu matei, sargento, me dá um peso enorme no coração.” Com a aproximação do barqueiro sinistro, uma sombra singrando as águas escuras do mistério, sua canoa deslizando lentamente, o general completa: “Essa travessia a gente deve fazer sozinho mesmo”. Tranquiliza a figura lúgubre: “Não se assuste que eu não vou fugir.” Netto despede-se ao som da música sóbria e delicada de Celau Moreira com a mesma nobreza com que amou, lutou por seus ideais e confrontou seus dilemas.  A mesma nobreza que caracteriza o filme. Uma nobreza que, pode-se dizer, vem da tradição literária e cultural gaudéria.

Beto e Tabajara, militantes na cena cinematográfica gaúcha, coautores na mesma aventura, conquistaram um mérito indiscutível: a composição de um clássico nacional fincado em raízes regionais e capaz de extrapolar fronteiras.




                                                   

domingo, 30 de dezembro de 2018

O HOMEM AO LADO

(“Somente necessito de um pouco de sol que a você sobra.”)



 
       (Photo by Consuelopumara - Own work)


O HOMEM AO LADO, de 2009, direção de Mariano Cohn e Gastón Duprat, é um exemplo representativo do vigor da produção cinematográfica na Argentina. Um brilhante filme sobre inversão de expectativas. E uma alegoria sobre as sociedades divididas em classes sociais e a interação contraditória entre elas, especialmente quando mundos diferentes são colocados em confronto.

Destaque especial para as elogiadas interpretações de Rafael Spregelburd, como Leonardo, e Daniel Aráoz, como Víctor.

Uma família de intelectuais da classe média, ele, Leonardo, professor de design, ela, Ana, professora de ioga, mais a filha pré-adolescente e a empregada doméstica, moradores da Casa Curutchet, em La Plata, são surpreendidos pelo vizinho proletário, Víctor, quando este começa a abrir uma janela na parede contígua à Casa, com o argumento que necessita de sol naquele lado de sua residência. No entender dos chamados burgueses isso configuraria uma invasão de sua privacidade. Mas aquele que consideram um “troglodita” está determinado em seu objetivo e mostra-se insensível aos argumentos de que sua empreitada é ilegal. Com o conflito um toma consciência do outro.

A Casa Curuchet, clássico do Modernismo, projetada em 1948 pelo lendário arquiteto Le Corbusier, é um personagem a parte no filme, com sua liberdade espacial e transparência, sua implantação e diálogo com o entorno, seu desenho geométrico, jogo de cheios e vazios e planos horizontais e verticais. Conforme depoimento numa cena em que um professor de arquitetura apresenta a edificação a seus alunos, ela é “A única casa que Le Corbusier projetou em toda América. Uma pequena obra-prima que combina simplicidade, conforto, harmonia...” Além de oferecer uma ambientação espetacular ao filme, a Casa representa o status social da família classe média e sua pretensão intelectual, o chamado bom gosto.

Uma família culta e aparentemente civilizada. O aparentemente é o principal tema do filme.

Do outro lado do conflito está o vizinho brega, o considerado mau gosto.

Conforme a filósofa Marcia Tiburi em seu excelente livro Ridículo Político, ao citar O Homem ao Lado, “Os regimes de comportamento ético e estético de cada personagem expressam-se em tensão. [...] O filme mostra que julgamos pelas aparências e quase sempre nos enganamos redondamente, não porque as aparências enganem, mas porque não olhamos com cuidado.”

Fazendo a ressalva que é aconselhável assistir ao filme antes de continuar a leitura, Marcia Tiburi é precisa em sua análise. Adianto que o final é surpreendente, mas os diretores Cohn e Duprat aos poucos nos fornecem pistas sobre as aparências não serem bem o que parecem.

Não olhamos com cuidado, mas algumas cenas vão revelando o perfil de Leonardo, o “respeitado” intelectual, e preparando o desfecho inusitado: a cantada na aluna, a grosseria com o tio doente mental de Víctor, o desconforto e falta de consideração para com os presentes que receberam do vizinho indesejável, a arrogância com que trata os alunos, o preconceito de classe explicitado na conversa com amigos, a intransigência da esposa, um momento de impaciência com a própria mulher, o voyeurismo dirigido à janela do vizinho (exatamente o que desconfiavam deste).

Interessante como o primeiro diálogo entre os dois personagens principais, Leonardo e Víctor, já traz indicação do que seria sugerido ao longo do filme. Leonardo, da janela de sua casa, contendo sua irritação, tenta argumentar com Víctor, que surge no buraco da parede deste, que ele não pode abrir aquela janela. Este responde, como um puxão de orelhas no interlocutor sem educação: “Vamos por partes. Boa tarde. Eu sou Víctor. A quem tenho o prazer?” Como se o burguês não considerasse seu vizinho proletário digno de um cumprimento, dada sua inferioridade social. Naquele momento, já se insinuava a arrogância do personagem intelectual classe média.   

Pelo lado do personagem bronco, reparamos depois de um tempo que sua postura, apesar da falta de polimento, é sempre mais amistosa, quase querendo iniciar uma amizade. Defende o tio deficiente quando o julgou ofendido, oferece presentes e flores, apresenta depois uma bela namorada e consegue interagir com a filha do casal burguês, o que o próprio pai não conseguia. Apesar de no início parecer ameaçador revela-se depois mais generoso e afetivo.

O final cai como um soco em nossa sensibilidade distraída e identificada com aqueles que são detentores da máscara de respeito e bom gosto. Inverte nossa expectativa e inverte nossos valores. O fetichismo das imagens em contraste com a arquitetura-verdade de Le Corbusier e do Modernismo. Apesar dos sinais, na realidade nos recusávamos a enxergar naqueles que julgamos nossos pares atitudes distintas das aparências que a classe média cultiva para si. Aparências tão hipócritas quanto legitimadoras do status quo e suas diferenças de classes.

O Homem ao Lado é um grande filme que nos confronta no espelho.




quinta-feira, 20 de setembro de 2018

O QUARTO DE JACK

(“Há lugares demais no mundo. Há menos tempo, porque o tempo tem de ser espalhado bem fininho por todo lugar, como manteiga.”)




O QUARTO DE JACK (Room), produção canadense-irlandesa de 2015, entre os filmes que assisti nos últimos anos é um dos que mais me surpreendeu. Não esperava que fosse tão bom.

O diretor Lenny Abrahamson e a roteirista Emma Donoghue, autora do próprio romance em que se baseia o filme, conseguiram, com um resultado muito bacana, combinar drama familiar, mistério, suspense, crítica social e nossa capacidade de enternecimento pelas crianças. Pode-se dizer que esse último fator é o mais destacado. Ao lado da interpretação oscarizada da atriz Brie Larson como Joy Newsone, a mãe do menino, atuação muito legal, e a par da química excepcional que rolou entre ambos, no entanto é o ator mirim Jacob Tremblay como Jack que rouba quase todas as cenas e sobre cujo olhar inocente, irresistível à nossa comoção, o filme se estrutura.

Uma observação: esse é um filme sobre o qual comentários não devem se alongar. Quanto menos spoilers melhor. Portanto, se você ainda não viu a fita, pare tudo, vá lá, assista ao filme, enjoy the program e volte para prestigiar este modesto espaço.

Quase todo o desenrolar de O Quarto de Jack é acompanhado pela ótica do pequeno menino de cinco anos, o próprio Jack. Mesmo quando ele não é o protagonista direto da ação, está quase sempre por perto, espreitando, atento, observando com seu olhar curioso. Ao mesmo tempo testemunhamos a luta da mãe, seus conflitos, sua obstinação em proteger e preparar o filho para um mundo que ele desconhece.

A primeira parte do filme é puro suspense. Pelo ponto de vista de Jack compartilhamos sua crença naquele mundo que lhe foi apresentado. Uma realidade na qual o quarto é um personagem importante. E depois o momento em que suas ilusões são questionadas e sua vida de criança precisa amadurecer e ganhar coragem para sobreviver.

Na segunda parte, quando praticamente começa a descobrir o mundo real - a descoberta do mundo pelos olhos de uma criança - simples visões de postes e fios, árvores e nuvens são quase capazes de nos levar às lágrimas.

A liberdade traz novos desafios para a mãe e o menino.

Acompanhamos as dificuldades de Joy, sempre ao lado do filho, em se readaptar à vida da qual fora afastada, os conflitos familiares e o enfrentamento de preconceitos e juízos morais por parte de quem não sofreu na pele o drama do qual foi vítima.

Para Jack, à medida que vai se inserindo no novo mundo muita coisa lhe parece estranha, e ao mesmo tempo é sensível ao momento da mãe, como na cena em que a bela melodia do piano da trilha sonora conduz seus pensamentos:

“Há lugares demais no mundo. Há menos tempo, porque o tempo tem de ser espalhado bem fininho por todo lugar, como manteiga. Todas as pessoas dizem: Rápido. Vamos depressa. Aperte o passo. Termine agora. Mãe estava com pressa de chegar ao céu, mas me esqueceu. Boba mãe. Então os ETs a jogaram de volta pra cá, e a quebraram.”

Por fim, Jack e sua mãe foram obrigados a fazer uma última visita ao Quarto. Precisavam enterrar no passado o trauma que vivenciaram juntos e o menino se despedir de um lado afetivo ainda presente em suas lembranças. Para o pequeno Jack, aquele espaço, onde realidade e fantasia se confundiam e moldavam o mundo que ele conhecia até então, deixou marcas contraditórias em seu espírito. Contradições que a liberdade da qual passa a usufruir exige a ultrapassagem e o abandono das referências carinhosas que marcaram sua infância naquele universo entre quatro paredes.




sexta-feira, 18 de maio de 2018

O TALENTOSO RIPLEY

(“Eu sempre achei que seria melhor ser um alguém falso que um ninguém verdadeiro.”)



 


Vivi a experiência de ser proprietário de videolocadora. Eu e minha mulher atendíamos no balcão. Foi uma grande escola. Sobre cinema e sobre a espécie humana. Minha esposa gosta de comentar que aprendeu “a conhecer as pessoas”.

Certa ocasião duas amigas se encontraram em nossa loja. Depois dos cumprimentos, uma delas, uma senhora de mais idade, perguntou: “E então? Tens ido aos Estados Unidos?” A outra, uma mulher interessante, rica, gay, bela e charmosa respondeu, com uma classe que sempre nos impressionava: “Não. Prefiro a Europa. Estou apaixonada por Positano. América já não me seduz.” Achamos o máximo aquela resposta.

O TALENTOSO RIPLEY (The Talented Mr. Ripley), de 1999, um clássico do final do século XX, direção de Anthony Minghella, é um filme sobre americanos para quem “América já não seduz”.

É também um filme sobre quem despreza. Cate Blanchett, no papel de Meredith Logue, filha de um rico industrial do ramo têxtil, explica melhor conversando com Matt Damon (Tom Ripley fazendo-se passar por Dickie Greenleaf) na escadaria da Plaza España, na Roma dos anos 50: “A verdade é que, se você teve dinheiro a vida toda, mesmo desprezando-o, e nós desprezamos, concorda? você só fica à vontade entre gente que tem e despreza.”

Além de Meredith, temos uma turma de personagens que também desprezam, consumindo na Itália, sem nenhum pudor, as mesadas enviadas pelos pais ricos: Dickie Greenleaf (Jude Law), filho de um milionário do ramo naval responsável por contratar Tom Ripley, como suposto amigo do filho, para convencer Dickie a voltar para a América; Marge Sherwood (Gwyneth Paltrow), escritora, namorada do rapaz milionário; e Freddie Milles (Philip Seymour Hoffman), amigo de Dickie, bon vivant, especialista em gastar mesadas.

No meio deles está Tom Ripley (Matt Damon). Esse não despreza; pelo contrário, mataria por isso.

Um dos principais méritos do filme, além de sua qualidade, é apresentar a obra da grande escritora norte-americana Patricia Highsmith e seu principal personagem de vários livros, o anti-herói Tom Ripley, um sujeito com muitas habilidades e moral tanto enviesada quanto particular.

Essa é a segunda adaptação de O TALENTOSO MR. RIPLEY, de Highsmith. A primeira foi O SOL POR TESTEMUNHA (Plein Soleil), filme francês de René Clément, de 1960, com Alain Delon no papel de Tom Ripley. Outros bons filmes também exploraram o universo de Highsmith, com ou sem Ripley. Em especial Pacto Sinistro (Strangers on a Train), de Alfred Hicthcock, e o recente Carol, de Todd Haynes, estrelado por Cate Blanchett, baseado no livro onde a própria autora cria uma ficção baseada em experiências pessoais.

The Talented Mr. Ripley é a obra mais famosa de Patricia Highsmith e onde Tom Ripley faz sua estreia, livro que elegi como integrante do meu rol afetivo de leituras, aqueles que são nossos favoritos. A escritora é um dos maiores nomes da literatura policial psicológica e seu talento extrapola os limites do gênero. Seu personagem emblemático, o amoral Tom Ripley, move-se por um universo criado pela escritora onde claustrofobia e apreensão são conceitos sempre presentes, conforme observou o renomado escritor inglês Graham Greene, outro mestre da literatura de suspense. Por esses caminhos Highsmith vai a fundo na investigação do lado obscuro da alma humana. Aqueles recônditos, além da moral, onde nossas motivações, às vezes confusas, às vezes contraditórias, convergem para um único objetivo: nós mesmos. Sombrio, mas humano, sincero. Existe sinceridade maior que o egoísmo?

Assim é Tom Ripley. Um cara que pensa em se dar bem, não importam os meios. Em O Talentoso Ripley ele se move entre jovens burgueses ricos e desocupados, admirando-os e invejando-os, e ao mesmo tempo cresce um sentimento de revolta por considerar que aqueles filhinhos de papai, que passam depois a recusar sua companhia, não merecem aquela vida rica de ócio e prazer na Europa, alheios à luta pela sobrevivência na América, e que ele sim, ele, Tom Ripley, com suas habilidades, é que mereceria aquele estilo de vida. Ele saberia valorizar e deveria ter nascido para aquilo. Como a vida é injusta, como não é ele o privilegiado? “Eu sempre achei que seria melhor ser um alguém falso que um ninguém verdadeiro”, repete para si mesmo, justificando a correção radical que talha com enorme astúcia, talento e fúria contra a injustiça do mundo.

No filme de Anthony Minghella, as locações não são na Positano de nossa amiga da locadora, mas na paradisíaca e fictícia Mongibello, costa da Sicília, mais Roma, Veneza e Nova York. A versão do diretor inglês captura o espírito do livro, o pensamento individualista e contraditório de Ripley, sua ambição, o clima de tensão que se estabelece aos poucos e acentua-se após o evento drástico que altera a narrativa, assim como a elegância da ambientação e as personalidades dos protagonistas, desenvolvidas sem decepcionar a profundidade conferida por Highsmith. O filme é muito bom, assiste-se sempre com muito prazer.

A versão de Minghella, como praticamente em quase todas as adaptações das páginas da literatura para as telas, tem diferenças em relação ao romance, mas é fiel à essência da obra. Algumas dessemelhanças são mais significativas. No filme Ripley é assumidamente gay. No livro, o relacionamento entre os dois personagens principais, Ripley e Dickie Greenleaf, é pontuado por um viés homossexual que nunca se confirma, fica sempre nas entrelinhas (assim como em Pacto Sinistro); e no caso de Tom Ripley ele sofre por não assumir, por não entender direito os sentimentos que nega com veemência. Na sequência do barco, momento-chave da narrativa, Minghella a apresenta como o clímax violento de um desentendimento, e depois, a troca de identidades é colocada como uma possibilidade aproveitada por Tom; no livro a escritora expõe a irritação, a revolta (com o mundo, com Dickie, com a rejeição) e a premeditação que surge como um insight perverso e brilhante.

O filme centra-se principalmente na ambição de Ripley, na troca de identidades, no desejo do personagem de ser “alguém” a qualquer custo, o que aparece sugerido em cenas da primeira parte, como quando ele finge ser Dickie Greenleaf, ao conhecer Meredith Logue, e depois ao experimentar as roupas do próprio, cena comum no filme e no livro. Na obra original, Patricia Highsmith enfatiza o caráter enviesado de Tom Ripley e os caminhos tortuosos por onde sua mente o leva. A psicologia do personagem é dissecada como se um cirurgião observasse o fluxo do sangue correndo pelas veias abertas de um cérebro implacável, inquieto, contraditório, pulsante, intenso, sofrido, sensível e sobretudo empenhado no que é melhor para si.

Em O Sol Por Testemunha, René Clément filma uma versão bem mais livre em relação ao romance original. Um bom policial francês, coerente com a essência do livro em que se baseou. Mas tanto o filme de Clément quanto o de Minghella têm um ponto em comum significativo: os finais são moralistas. No primeiro Ripley é desmascarado pela justiça institucional; no segundo é castigado por sua angústia e pelos caminhos infelizes que seus crimes o levam. Já no romance de Highsmith, ao perceber no final que não será pego, Tom Ripley está mais esfuziante do que nunca, comemorando seu sucesso e solto para novas aventuras nos livros que viriam a seguir.

O mundo particular de Patricia Highsmith, nas páginas ou nas telas, é sempre uma experiência pela qual não se passa incólume. A capacidade de criar uma realidade própria e ao mesmo tempo universal é marca dos grandes escritores. Some-se a criação de um personagem como Tom Ripley, ícone da literatura policial, representação do que possuímos de mais humano e assustador, e temos a prova incontestável da genialidade da escritora norte-americana.