sábado, 25 de novembro de 2017

CISNE NEGRO / MÃE !

(“Você nunca me amou! Você ama o amor que dedico a você!”)



 


Se ficção científica e filosofia é uma associação obrigatória como garantia de qualidade do gênero, terror e psicologia é outra combinação que se impõe da mesma maneira. Darren Aronofsky, cineasta norte-americano, com CISNE NEGRO (Black Swan), 2010, e MÃE! (Mother!), 2017, revela-se como representante visceral dessa corrente. Digamos, de maneira simplificada, que o cara faz filmes de terror de arte. E apresenta-se como legítimo interlocutor e defensor da alma feminina, retratando mulheres frágeis, oprimidas, aparentemente indefesas, que se transformam na defesa de seus sonhos e de seu mundo. Ambos os filmes, narrados do ponto de vista das protagonistas femininas, são fábulas perturbadoras, expressivas e cinema de apurado requinte técnico.

Em Cisne Negro, Natalie Portman é Nina Sayers, bailarina do New York City Ballet promovida para o papel de Rainha Cisne, numa versão moderna do ballet clássico O Lago dos Cisnes, no qual interpretará tanto o Cisne Branco como o Cisne Negro. Tímida, insegura, tratada como criança e extremamente reprimida pela mãe (a materialização do superego) e por si própria, como observa o diretor do ballet, Vincent Cassel (esse um personagem marcado pelo narcisismo), Nina, em conflito com sua dupla personalidade, o principal tema do filme, é perfeita para o papel de Cisne Branco, como se confirma nos ensaios, mas não consegue se soltar para a performance do Cisne Negro (representação do id).

Mila Kunis, a colega bailarina Lilly, é o alter ego de Nina. Lilly é a garota descolada, transgressora, livre das amarras, a menina que chegou de San Francisco. Não tem precisão mas é espontânea quando dança. Sua presença em cena é irresistível. Representa o próprio Cisne Negro. A faceta dark, ousada, sedutora que Nina reluta em aceitar, mas ao mesmo tempo lhe provoca atração e desejo. Não por acaso as duas personagens protagonizam uma das melhores cenas do filme... 

O uso de espelhos é presença constante no treinamento dia a dia do ballet. O diretor utiliza esse elemento em conjunto com várias superfícies reflexivas ilustrando o tema da dupla personalidade de Nina, ao mesmo tempo em que incorpora artifícios de filmes de terror, mas sempre de uma maneira criativa, imprimindo tensão e interesse à trama sempre sombria. Inclusive, noutra cena importante entre Nina e Lilly, um estilhaço de espelho chega a ser usado como arma.

A interpretação sensacional de Natalie Portman, dançando e atuando, digna do Oscar que recebeu, traz profundidade ao doloroso processo de transmutação da personagem em Cisne Negro. Autoflagelação, como se arrancasse a pele antiga para substituir por uma nova, e fantasias soturnas fazem parte do transcurso. Nina sofre mas luta contra a culpa imposta pela dualidade da repressão materna e a aceitação dos próprios instintos. Seu processo de transcendência, sua busca desesperada pela perfeição, esse ideal efêmero ao qual se agarra para resolver seu conflito, só encontrará realização num ato final radical. Apenas a morte (ou quase) poderia capturá-la? Encontrará assim a liberdade? Ou uma vida represada se apaga para dar lugar a uma nova? Intenso e angustiante, plasticamente irretocável, Cisne Negro é um filme para ver e rever sempre com interesse. Um interesse instigante, vigoroso, obscuro e repleto de simbolismos.

Em Mãe! a proposta de Darren Aronofsky é mais radical. Assisti ao filme numa ensolarada Lisboa do mês de setembro, de céu sempre azul, um contraste brutal com o tema sombrio e desesperador desse conto fantástico sobre a alma feminina em meio ao caos da existência em que vivemos.

Se em Cisne Negro a garota é sufocada pela mãe e por sua própria personalidade, em Mãe! o mundo de Jennifer Lawrence, o mundo feminino, a casa, o marido, o filho que nascerá depois, é constantemente ameaçado por intromissões exteriores. E o marido não lhe dá a mínima. Mãe! também pode ser interpretado como uma fábula sobre devastação ambiental, onde a figura materna representa a natureza, a casa seria o planeta e os intrusos, a civilização destrutiva. Ou ainda como alegoria bíblica.

Motivado pela polêmica criada em torno do tom extremamente perturbador do filme, Martin Scorsese saiu em defesa de Mother!, através de um artigo no Hollywood Reporter: "É um filme que precisa ser explicado? E a experiência de assistir a Mãe!? Foi tão tátil, lindamente encenado - a câmera subjetiva e os ângulos reversos, sempre em movimento... o design de som, que vem ao espectador pelos cantos e o leva cada vez mais para as profundezas deste pesadelo... o desenrolar da história, que gradualmente se torna mais e mais perturbador conforme o filme avança. O terror, a comédia sombria, os elementos bíblicos, a fábula cautelar - eles estão todos lá, mas eles são elementos da experiência total, que engole os personagens e os espectadores junto deles. Somente um verdadeiro e apaixonado cineasta poderia ter feito esse longa.”

Jennifer Lawrence e Javier Bardem vivem num casarão retirado em constante reforma. Reforma que Jennifer pegou como tarefa para si, o que lhe proporciona grande satisfação. Afinal, é a casa do marido que ela está reconstruindo como prova indiscutível do seu amor. Bardem, o marido, é um escritor que não consegue escrever. Os primeiros intrusos que se insinuam no lar da jovem protagonista são o casal Ed Harris e Michelle Pfeiffer. O diretor não identifica seus personagens principais com nomes próprios, conferindo um caráter universal a sua narrativa.

Ed Harris aparece como um médico que precisa de ajuda e é recebido por Javier Bardem. Descobre-se depois que na verdade ele é um fã do escritor. É o suficiente para Bardem dedicar-lhe toda atenção, deixando de lado a esposa para quem já havíamos percebido sua indiferença. Convida Harris para pernoitar na casa, mesmo com o sentimento de desconforto que a jovem companheira externa. É o início de um processo de violação ao mundo de Jennifer Lawrence. Depois aparece Michelle Pfeiffer como esposa do convidado. Espaçosa, intrometida, ela prenuncia em quão preocupante a situação poderá se transformar. Se Harris rouba a atenção do marido, Pfeiffer adentra a privacidade de Jennifer com perguntas invasivas e atitudes sem constrangimento. Começamos a nos sentir incomodados, tal qual a garota anfitriã.

Javier Bardem guarda em seus aposentos, num pedestal, uma espécie de joia do tamanho da palma de uma mão, dedicando-lhe todo cuidado. Explica para Ed Harris que certa vez perdera tudo num incêndio e aquele objeto era tudo que lhe restara (no final do filme entenderemos o significado). Não permite que ninguém o toque. Quando o casal de hóspedes o quebra acidentalmente, o panorama na casa começa a ficar fora de controle, agravado com a chegada de dois rapazes adultos, filhos de Harris e Pfeiffer. Os irmãos, referência a Caim e Abel, brigam entre si por causa do testamento do pai.

Michelle Pfeiffer comenta com Jennifer Lawrence que os filhos só trazem desgosto. Você os ama intensamente mas eles não retribuem. Assim como Jennifer e o marido, relação já insinuada pela hóspede (“Look at you! Se ele não está o tempo todo em cima de você, alguma coisa está errada”). Ela percebe que a bela jovem realmente ama o companheiro, mas não há reciprocidade. Parece ser a sina da condição feminina, amar mas não ser amada.

Uma morte acontece e mais intrusos invadem a casa, ameaçando a vida íntima de Jennifer, seu lar e as reformas às quais se dedicou. A desordem se instaura sem pedir licença.

Então, após o incidente do velório, sobrevém um período de paz aparente. Voltam a ficar a sós em seu casarão. Jennifer e Bardem se desentendem (“Você não é capaz nem de me comer!”, ela grita) e em seguida reconciliam-se numa cena de sexo carregada de raiva e desejo represado. Passa-se um tempo e a jovem anuncia que está grávida. Uma vida havia se esvaído, mas outra está por nascer. Este milagre da vida, a geração de um novo ser, inspira o escritor a superar sua impotência e voltar a escrever. Bardem transforma-se, está exultante e cheio de energia.

Seu novo livro é um sucesso. Como consequência, a paz do lar está novamente ameaçada. Primeiro a imprensa, depois multidões de admiradores. Depois, ainda, hordas de fanáticos, todos estimulados pelo conteúdo do livro, o (re)nascimento da vida (como se fosse uma bíblia). Sempre os outros merecem mais atenção de Bardem. A esposa é sempre preterida. Seu trabalho, amigos, fãs, estranhos, narcisismo estão sempre em primeiro lugar.

A situação torna-se intolerável. Ela, grávida, sua casa se demolindo, o caos tomando conta do seu mundo. A angústia que sentia desde o começo do filme, agora é puro desespero. E é assim também que nos sentimos desde o início, incomodados, perturbados, e da metade em diante do filme, desesperados. E Darren Aronofsky não alivia. Apesar de alguns instantes de humor negro, sentimos o mesmo pavor que Jennifer Lawrence. Um pavor que cresce à medida que se aproxima o momento de ela dar à luz. Já não se reconhece mais o interior da casa das reformas e mistérios, transformou-se num campo de batalha. Estamos num pesadelo sem fim, nós e Jennifer.

Nesse cenário de caos, o caos que é a síntese da própria natureza da civilização, só se encontra um breve momento de paz quando a criança nasce. Um novo ser, um ser amparado pelo milagre da vida, que, como um predestinado, vítima inocente da ilusão, poderá conferir sentido a um mundo repleto de desordem e desespero. Poderá redimir aquele mundo que o gerou.

No entanto, a trégua dura pouco. Referências bíblicas são evocadas quando a criança é arrancada da guarda de sua mãe. Agora, a mulher, a mãe, se dá conta que o mundo que ela cultiva nunca terá paz, nunca será verdadeiramente seu, como não é o filho que nasceu, sacrificado pela fantasia da redenção. O caos que ordena a realidade, o mundo exterior (seu marido aliando-se a ele) está sempre invadindo seus recantos, sempre se impondo com violência, opressão e fanatismo. Sua casa, seu santuário, sangra como ela. E então, aquela criatura que era dócil, assustada, submissa reage com uma fúria que literalmente não deixará pedra sobre pedra. A fúria de quem foi impotente para defender sua cria. A fúria de quem se rebela contra os algozes com o peso das dores acumuladas em seu ventre e âmago. Para depois tudo continuar como sempre foi.

No clímax do filme, Jennifer Lawrence (também como voz do próprio sofrimento humano) confronta a alma feminina e a alma masculina, contestando Javier Bardem como homem e como o ser onipotente revelado ao final:

Você nunca me amou! Você ama o amor que dedico a você!













domingo, 17 de setembro de 2017

A CHEGADA

(“Apesar de conhecer a jornada e aonde ela leva eu a acolho. E saúdo cada momento dela.”)




“Esse talvez tenha aberto os olhos para o ideal contrário: para o ideal do homem mais pleno de alegria, mais vivo e mais afirmador do mundo, que não somente aprendeu a contentar-se e suportar aquilo que foi e que é, mas que o quer novamente tal como foi e é, por toda a eternidade.”

Friedrich Nietzsche (1844 – 1900) é um dos filósofos de maior influência no pensamento ocidental e contemporâneo, alcançando até mesmo galáxias longínquas, onde sua Teoria do Eterno Retorno foi absorvida pelos heptapods, que precisam ensiná-la a Amy Adams, com o objetivo de sua civilização, no futuro, ser salva pela humanidade, ao mesmo tempo em que necessitam se defender do individualismo e belicismo humanos. Para repassar os ensinamentos e sua compreensão do tempo não linear precisam se valer dos fundamentos da linguística.

Esse é o argumento espetacular de A CHEGADA (Arrival), do diretor canadense Denis Villeneuve, filme de 2016 premiado como Melhor Filme de Ficção Científica / Terror e Melhor Roteiro Adaptado pelo Critics' Choice Award; Oscar de Melhor Edição de Som; Prêmio Bafta de Melhor Som; Melhor Roteiro Adaptado pelo Writers Guild of America e Melhor Filme Estrangeiro pelo Grande Prêmio do Cinema Brasileiro.

Ficção científica e filosofia, associação obrigatória em todo grande filme de ficção, patamar já alcançado por essa produção, um dos melhores filmes do gênero já realizados. É obrigatório destacar também o trabalho sensacional de edição de som, que dá vida aos carismáticos extraterrestres e conduz o mistério do filme com um fascínio redobrado, valorizando o argumento e a qualidade desse novo clássico.

Naves alienígenas aterrissaram em doze diferentes países ao redor do mundo. Amy Adams, como a Dra. Louise Banks, autoridade mundial em linguística, é convocada pelo governo americano para decifrar a linguagem dos extraterrestres que pousaram em seu país, chamados pelos terráqueos de heptapods, por possuírem sete pés.

Como os heptapods poderiam transmitir seus conhecimentos para Amy Adams? Conforme fundamentos básicos da linguística, para aprendermos uma língua estrangeira devemos pensar como nativos de tal língua. Devemos imergir em sua cultura. Para aprender japonês, precisamos pensar como japoneses (por isso japonês é tão difícil!). A Dra. Louise Banks explica melhor a Ian Donnelly (Jeremy Renner), cientista também convocado para a missão:

 “Sim, a Hipótese de Sapir-Whorf. A teoria de que a língua que você fala determina como você pensa.”
“Ela afeta como você enxerga tudo”, complementa Ian.

Pois bem, no processo de aquisição da linguagem Amy Adams absorve o pensamento dos heptapods, com sua compreensão do tempo não linear (os próprios sinais gráficos da linguagem alienígena, sua ortografia não linear, assemelham-se ao símbolo circular da mandala, sem início nem fim, assim como o nome da filha de Amy, Hannah, um palíndromo, que se lê igual de trás para frente). Essa compreensão é a grande dádiva dos visitantes, seu presente, além da lição sobre trabalho em solidariedade que pretendem passar aos humanos, forçando-os a superar a barreira dos interesses antagônicos e a delimitação das fronteiras excludentes.

Se lhe fizessem a seguinte pergunta: você aceitaria viver novamente sua vida tal qual ela foi, sem nada mudar, por toda a eternidade? Conforme Nietzsche e a Teoria do Eterno Retorno, a resposta sim é uma afirmação da existência, o ideal do homem mais pleno de alegria, mais vivo, aquele que valoriza a vida com todas as alegrias e tristezas inerentes ao próprio percurso.

Confrontada com a noção do tempo não linear, onde passado, presente e futuro são caminhos simultâneos cruzando os labirintos da existência, a resposta de Amy Adams ao enigma nietzscheano é afirmativa:

Apesar de conhecer a jornada e aonde ela leva eu a acolho. E saúdo cada momento dela.

Sua coragem e o aprendizado a que se submeteu serão decisivos para enfrentar a intolerância humana e defender os heptapods e o plano que traçaram como única esperança para duas raças cuja possibilidade de entendimento passa por uma nova compreensão, por parte dos humanos, acerca do tempo e da superação dos limites que nos aprisionam.

O processo de aprendizagem de Amy Adams, catalisadora desse contexto, é difícil e penoso. A interação com os alienígenas e o seu próprio drama pessoal, que aparece como instantâneos de uma vida desvendada, convergem para o ponto onde revelação, sofrimento e realização não são caminhos óbvios para um novo estágio:

A memória é algo estranho. Ela não funciona como eu imaginava. Estamos tão presos ao tempo. À sua ordem. Mas agora não tenho tanta certeza se acredito em começos e fins.

Acompanhamos as reflexões e desafios da protagonista ao longo de um filme enigmático e repleto de belas cenas. Numa das últimas Amy Adams questiona Jeremy Renner:

“Ian, se você pudesse ver toda a sua vida do início ao fim mudaria coisas?”

E você? Lembre-se de Friedrich Nietzsche antes de responder.


                                                                                                                             

sábado, 25 de março de 2017

BRASÍLIA

(“Cinquenta anos em cinco”)




 


A história da criação de BRASÍLIA é uma história contada por pioneiros. O documentário OSCAR NIEMEYER – A VIDA É UM SOPRO, de 2007, dirigido por Fabiano Maciel, e a minissérie JK, de Maria Adelaide Amaral e Alcides Nogueira, exibida pela Globo em 2006, são excelentes registros desse período.

Em ambos os filmes, os momentos em que a tabelinha Oscar Niemeyer e Juscelino Kubitschek aparece em cena, lembrada pelo arquiteto no documentário ou dramatizada na minissérie, ao lado da concepção e nascimento da nova capital federal, são pontos altos das narrativas.

Como complemento dessas indicações, vou me atrever a apresentar um relato familiar.


Meu pai já falecido, Manoel Laranja, o Manolo, como era conhecido 
pelos familiares e amigos, nasceu em São Borja, em 1918. Viveu sua infância e juventude na fazenda de meus avós. Até os 16 anos era praticamente analfabeto. Decidiu que deveria estudar. Completou o supletivo da época, formou-se em Engenharia Civil no Rio de Janeiro e participou da gestão de Leonel Brizola na Prefeitura de Porto Alegre, na década de 1950. Inclusive tinha um projeto para incentivar o consumo de peixe na capital gaúcha, o que não era comum na época, através de um intercâmbio com a cidade de Rio Grande, proposta que acabou sendo boicotada pelos grandes frigoríficos de carne.

Tinha, também, muitas histórias do tempo de estudante e profissional no Rio de Janeiro. Dele e do irmão que também morava no Rio, Francisco Laranja, médico e diretor do Instituto de Manguinhos, reconhecido internacionalmente como um grande cientista brasileiro pelas pesquisas sobre a Doença de Chagas. Os Laranjas conheciam o então Presidente da época, Getúlio Vargas, e o filho, Maneco, conterrâneos de São Borja. Uma das histórias contadas por meu pai era sobre o amigo chinês que fazia parte da turma frequentadora das festas oficiais de um Rio então glamourizado, e depois descobriram que era um espião a serviço de seu país.

Posteriormente, Manoel Laranja veio a ser um dos engenheiros responsáveis pela construção de Brasília. Era um homem simples. Adorava a vida rural. Não tinha inimigos. A par de sua determinação, lucidez e espírito prático, era generoso e conquistava a simpatia de quem se aproximava dele. Ensinou aos filhos, entre outras coisas, que não se economizava com saúde e educação (o que soa como exemplo para nosso próprio país, açoitado, no presente, por um período de austeridade sem sentido nos investimentos públicos). Não se gabava de sua participação nesta página da história do Brasil, o nascimento de um ícone de Arquitetura e Urbanismo, a capital federal símbolo da obra do maior arquiteto brasileiro, Oscar Niemeyer, e do grande urbanista Lúcio Costa, e marco do processo de modernização e integração territorial do país.

Naqueles tempos, mesmo com incentivos do governo, havia uma resistência por parte das pessoas em migrar para Brasília. Apenas os pioneiros tinham coragem (hoje a população é estimada em quase três milhões de habitantes).

Apesar de eu ser muito pequeno na época (entre dois e cinco anos), guardo algumas lembranças da minha infância nos primeiros anos de Brasília. A terra vermelha, O Vigilante Rodoviário na TV, os candangos, os carros de corrida coloridos nas ruas da Esplanada, nossa casa na Novacap (Companhia Urbanizadora da Nova Capital), depois a casa na Avenida W3.

A W3, aliás, tinha uma proposta arquitetônica muito interessante e inovadora para a época: as garagens das casas de dois pisos, alinhadas lado a lado, davam para a via de carros, a rua propriamente dita; no lado oposto as fachadas se abriam para um jardim de grama muito verde, cortado por uma via de pedestres que se estendia ao longo das quadras, as chamadas superquadras. Meus olhos de criança ficavam maravilhados, achava tudo muito bonito. Infelizmente, hoje em dia, a W3 está completamente descaracterizada.

Manoel Laranja era o engenheiro responsável por implantar o sistema de micro-ondas na cidade que se erguia. Trabalhava sob as ordens diretas do Pres. Juscelino Kubitschek, como um dos seus homens de confiança. As micro-ondas são empregadas no campo das telecomunicações para carregar informações de sistemas de telefonia e televisão. Esse sistema iria garantir as ligações telefônicas de Brasília com o resto do país e o mundo. Era primordial que estivesse pronto antes da data de inauguração da cidade.

Uma instrução muito clara foi passada por Juscelino para meu pai: “Laranja, precisamos terminar as micro-ondas antes da inauguração de Brasília, custe o que custar! Qualquer coisa que você precise pode falar direto comigo! Você vai ter um canal só para isso. E pode usar nossos helicópteros sempre que precisar!” Como tudo que se precisava fazer na empreitada da capital emergente, a missão do engenheiro era quase impossível. Tudo tinha que ser feito em tempo recorde. Cinquenta anos em cinco era o lema de JK.

A mídia da época, que dependia da tecnologia a ser implantada, não acreditava. Questionavam o Presidente nas coletivas, entre outros assuntos: “Presidente, o sistema de micro-ondas vai ficar pronto a tempo?” Juscelino respondia: “Sim, ficará pronto na data prevista!” A tensão era crescente. Finalmente, depois de muitos percalços, em 17 de abril de 1960, as ligações telefônicas foram completadas! O sistema de micro-ondas estava estabelecido! Quatro dias depois, em 21 de abril, Brasília foi inaugurada! Minha mãe, Eunice, pôde preparar-se, aliviada, para o grande baile de gala na inauguração da nova capital federal.

Essa é uma das muitas histórias daquele tempo. Hoje, meus pais, assim como outros peregrinos, descansam protegidos por uma Luz que carrega consigo todas as respostas aos mistérios do Universo.

Dessa dimensão onde estão, apesar das críticas suscitadas pelo conceito da metrópole, estes pioneiros, Eng. Manoel Laranja e demais protagonistas, podem se orgulhar de ter participado do evento que viram tomar forma na poeira vermelha do Planalto Central: a criação de Brasília, obra-prima de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa e Patrimônio da Humanidade.














  

















sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

A REDE SOCIAL

(“É o máximo, só que vicia demais.”)




A REDE SOCIAL (The Social Network), de 2010, produzido por Kevin Spacey e dirigido por David Fincher, grande talento do cinema americano contemporâneo, que aborda a criação do Facebook, além de um grande filme é um testemunho sobre a genialidade e perversidade do espírito humano. E conforme o próprio diretor, a questão principal “é a perda da inocência para todos os envolvidos”. A gênese da mais popular rede social e a disputa que se trava entre Mark Zuckerberg e o brasileiro Eduardo Saverin, sócios e depois desafetos, e com demais protagonistas, num processo que inicia como uma brilhante brincadeira juvenil até se transformar num sucesso monumental, envolvendo ambição, poder, dinheiro, prestígio, vaidades, amizade e traição, são a base de um novo clássico da Hollywood do século XXI.

Tudo no filme tem muita classe: a direção, o roteiro (Aaron Sorkin), a fotografia (elegante e tradicional, combinando com o ambiente de Harvard), a música, efeitos especiais, montagem e o talento dos jovens atores (um time de futuros astros), principalmente a química entre Jesse Eisenberg e Andrew Garfield.  

Começa com uma cena excelente, uma discussão de bar entre Eisenberg (como Mark Zuckerberg) e a ótima Rooney Mara (como a namorada Erica). Zuckerberg é apresentado como o estereótipo do nerd, o cara inteligente. Fala rápida, raciocínio turbinado, mas duramente questionado pela garota, que lhe dá o fora quando consegue falar: “Ficar com você é como namorar uma StairMaster”. “Okay, você ainda vai ser um gênio bem-sucedido da computação. Mas vai passar a vida pensando que as garotas não gostam de você por ser um nerd. E eu quero que saiba, do fundo do meu coração, que não será verdade. Isso acontecerá porque você é um babaca.”

O prólogo a mil apresenta a narrativa sempre envolvente e empolgante que durante todo o filme acompanha a epopeia dos garotos da informática, a paixão de Zuckerberg e turma pela sua criação, o Facebook, e o jogo de interesses e idiossincrasias que envolve vários personagens na disputa pelos direitos e benesses de uma concepção que modificou o comportamento de uma geração (ou de várias gerações).

A última cena retoma referências à sequência de abertura. Ao final do que seria a última reunião de mediação, Zuckerberg fica a sós com a advogada Marylin (a bela Rashida Jones), que acompanhou todo o processo jurídico e ouve o empresário da informática desabafar em tom de defesa:
- Eu não sou um vilão.
- Eu sei disso – responde Marylin, com o entendimento privilegiado de quem observa de fora – Em um testemunho emocional, 85% devem-se ao exagero.
- E os outros 15%?
- Perjúrio. Todo mito de criação tem um vilão.
Ao sair, ela complementa: “Você não é um babaca, Mark. Apenas faz de tudo para ser”.

O processo de criação do Facebook foi genial, quiçá mitológico. A grande sacada de Zuckerberg foi perceber que “buscamos os amigos na Internet”. O site assumiria “o conceito de nunca estar pronto” e, principalmente, “seria exclusivo”. Como reconhece numa audiência Eduardo Saverin (Andrew Garfield), que litiga por uma participação justa nas ações milionárias: “Era uma grande ideia. Os usuários forneceriam suas fotos e dados e convidariam ou não os amigos para visitá-los. Num mundo regido pela estratificação social, isso seria o máximo”.

Os gêmeos Winklevoos (Armie Hammer) também recorreram à justiça alegando a autoria da ideia de criar uma rede social exclusiva. Embora o filme seja a dramatização de uma história real, era interessante como os irmãos, remadores, atletas olímpicos, representavam um contraste com a inteligência de Zuckerberg, que sempre levava vantagem. Esse antagonismo entre remadores e caras da computação já havia aparecido no diálogo que abre o filme.

Uma ótima cena, bem-humorada, mostra os nerds da informática como se fossem literalmente uma outra raça, com um modo de raciocínio bem diferente do nosso, “pessoas normais”. Quando Zuckerberg, sócios e estagiários mudam-se para a Califórnia, para dar um up no processo de desenvolvimento do Facebook, quase destroem a casa onde se estabeleceram, com brincadeiras completamente piradas, e isso atrai a visita de Sean Parker (Justin Timberlake) e uma bela namorada. Criador do Napster, Sean já conhecia Mark e Eduardo e se “intromete” no Facebook. Zuckerberg os recepciona e convida para entrar. Abre a geladeira e joga uma garrafa de cerveja para Sean que se vira e a agarra. Repete o gesto na direção da garota mas a garrafa passa reto e se estilhaça na parede. Desculpa-se e atira outra cerveja. A menina, “pessoa normal”, não consegue acompanhar aquele raciocínio em alta voltagem e cacos voam novamente para todos os lados.

Sean Parker, a presença da astúcia na trama, mesmo sendo antipático para o espectador (simpatizamos com Eduardo, não com Sean) deu sua contribuição ao desenvolvimento do Facebook. Numa festa, entusiasmado, comenta que o site é “a verdadeira digitalização da vida real. Vivemos em fazendas, depois em cidades, e agora vamos viver na Internet!”

O primeiro contato dele com a criação dos garotos prodígios foi no quarto de uma garota com quem transou, através do computador aberto na página dela da rede social. Chama Amy (Dakota Johnson) e ela responde à pergunta sobre aquele website: “The Facebook? Temos em Stanford, tipo, há 2 semanas. É o máximo, só que vicia demais”.

Um acerto espetacular de Zuckerberg e parceiros. O Facebook rendeu-lhes fortunas e um enorme sucesso entre pessoas de todas as idades, no mundo todo, um “vício” que poucos conseguiram evitar.

Da minha parte, confesso que acho muito chato olhar as fotos dos outros com a filharada, pets, programas, viagens. Um certo exibicionismo social. Mas se as pessoas se divertem com essas coisas inocentes (principalmente quem posta as fotos), tudo bem. Essa dança festiva de clics, dígitos, likes, imagens, selfies, nomes, emoticons, reconheço que é uma curtição para quem gosta. Reencontrar amigos, restabelecer amizades quando pertinentes, mesmo que virtualmente, é outro ponto bacana. Conteúdos interessantes (ou não) também são compartilhados nas redes. Cada usuário reproduz seu nível de cultura, educação e informação.

Mas existe um lado nem tão singelo assim que se revelou mais tarde, algo que a turma de Zuckerberg jamais imaginou. Na verdade, perverso. “A perda da inocência”, referência de David Fincher aplicada ao filme mas sendo transposta para a realidade atual. Meias verdades, quase verdades, até verdades ou mentiras deslavadas, boatos infundados sem necessitar comprovação são disseminados pelas redes, com objetivos políticos e econômicos, e transformam-se em Verdades Absolutas. O que estão chamando de pós-verdade. Mobilizações sociais, golpes políticos, opinião pública manipulada, votações influenciadas (a eleição de Trump é um exemplo) são a consequência direta dessa arma poderosa que as estratégias de dominação ideológica lançam mão, como um monstro que espalha seus tentáculos empunhando bisturis em incisões afiadas nos cérebros das vítimas. Ninguém fica realmente imune ao seu poder. Sempre que a criatividade humana inventa alguma coisa interessante, o Sistema dela se apropria e a utiliza conforme seus interesses, geralmente bem-sucedidos.

Sob outro ângulo, Zygmunt Bauman, brilhante filósofo polonês, recentemente falecido, em entrevista muito perspicaz ao jornal El País, alertou que as redes sociais podem ser uma armadilha:

“A questão da identidade foi transformada de algo preestabelecido em uma tarefa: você tem que criar a sua própria comunidade. Mas não se cria uma comunidade, você tem uma ou não; o que as redes sociais podem gerar é um substituto. A diferença entre a comunidade e a rede é que você pertence à comunidade, mas a rede pertence a você. É possível adicionar e deletar amigos, e controlar as pessoas com quem você se relaciona. Isso faz com que os indivíduos se sintam um pouco melhor, porque a solidão é a grande ameaça nesses tempos individualistas. Mas, nas redes, é tão fácil adicionar e deletar amigos que as habilidades sociais não são necessárias. Elas são desenvolvidas na rua, ou no trabalho, ao encontrar gente com quem se precisa ter uma interação razoável. Aí você tem que enfrentar as dificuldades, se envolver em um diálogo. O papa Francisco, que é um grande homem, ao ser eleito, deu sua primeira entrevista a Eugenio Scalfari, um jornalista italiano que é um ateu autoproclamado. Foi um sinal: o diálogo real não é falar com gente que pensa igual a você. As redes sociais não ensinam a dialogar porque é muito fácil evitar a controvérsia… Muita gente as usa não para unir, não para ampliar seus horizontes, mas ao contrário, para se fechar no que eu chamo de zonas de conforto, onde o único som que escutam é o eco de suas próprias vozes, onde o único que veem são os reflexos de suas próprias caras. As redes são muito úteis, oferecem serviços muito prazerosos, mas são uma armadilha.”

Numa sociedade cada vez mais individualista, as redes sociais, a par de seu lado lúdico, sujeitas à contradição entre a solidão real e a comunicação virtual - inocente, interessante ou cínica - reproduzem esse comportamento, mas possuem potencial para ajudar na construção de uma sociedade mais solidária. Depende de nós.