domingo, 30 de dezembro de 2018

O HOMEM AO LADO

(“Somente necessito de um pouco de sol que a você sobra.”)



 
       (Photo by Consuelopumara - Own work)


O HOMEM AO LADO, de 2009, direção de Mariano Cohn e Gastón Duprat, é um exemplo representativo do vigor da produção cinematográfica na Argentina. Um brilhante filme sobre inversão de expectativas. E uma alegoria sobre as sociedades divididas em classes sociais e a interação contraditória entre elas, especialmente quando mundos diferentes são colocados em confronto.

Destaque especial para as elogiadas interpretações de Rafael Spregelburd, como Leonardo, e Daniel Aráoz, como Víctor.

Uma família de intelectuais da classe média, ele, Leonardo, professor de design, ela, Ana, professora de ioga, mais a filha pré-adolescente e a empregada doméstica, moradores da Casa Curutchet, em La Plata, são surpreendidos pelo vizinho proletário, Víctor, quando este começa a abrir uma janela na parede contígua à Casa, com o argumento que necessita de sol naquele lado de sua residência. No entender dos chamados burgueses isso configuraria uma invasão de sua privacidade. Mas aquele que consideram um “troglodita” está determinado em seu objetivo e mostra-se insensível aos argumentos de que sua empreitada é ilegal. Com o conflito um toma consciência do outro.

A Casa Curuchet, clássico do Modernismo, projetada em 1948 pelo lendário arquiteto Le Corbusier, é um personagem a parte no filme, com sua liberdade espacial e transparência, sua implantação e diálogo com o entorno, seu desenho geométrico, jogo de cheios e vazios e planos horizontais e verticais. Conforme depoimento numa cena em que um professor de arquitetura apresenta a edificação a seus alunos, ela é “A única casa que Le Corbusier projetou em toda América. Uma pequena obra-prima que combina simplicidade, conforto, harmonia...” Além de oferecer uma ambientação espetacular ao filme, a Casa representa o status social da família classe média e sua pretensão intelectual, o chamado bom gosto.

Uma família culta e aparentemente civilizada. O aparentemente é o principal tema do filme.

Do outro lado do conflito está o vizinho brega, o considerado mau gosto.

Conforme a filósofa Marcia Tiburi em seu excelente livro Ridículo Político, ao citar O Homem ao Lado, “Os regimes de comportamento ético e estético de cada personagem expressam-se em tensão. [...] O filme mostra que julgamos pelas aparências e quase sempre nos enganamos redondamente, não porque as aparências enganem, mas porque não olhamos com cuidado.”

Fazendo a ressalva que é aconselhável assistir ao filme antes de continuar a leitura, Marcia Tiburi é precisa em sua análise. Adianto que o final é surpreendente, mas os diretores Cohn e Duprat aos poucos nos fornecem pistas sobre as aparências não serem bem o que parecem.

Não olhamos com cuidado, mas algumas cenas vão revelando o perfil de Leonardo, o “respeitado” intelectual, e preparando o desfecho inusitado: a cantada na aluna, a grosseria com o tio doente mental de Víctor, o desconforto e falta de consideração para com os presentes que receberam do vizinho indesejável, a arrogância com que trata os alunos, o preconceito de classe explicitado na conversa com amigos, a intransigência da esposa, um momento de impaciência com a própria mulher, o voyeurismo dirigido à janela do vizinho (exatamente o que desconfiavam deste).

Interessante como o primeiro diálogo entre os dois personagens principais, Leonardo e Víctor, já traz indicação do que seria sugerido ao longo do filme. Leonardo, da janela de sua casa, contendo sua irritação, tenta argumentar com Víctor, que surge no buraco da parede deste, que ele não pode abrir aquela janela. Este responde, como um puxão de orelhas no interlocutor sem educação: “Vamos por partes. Boa tarde. Eu sou Víctor. A quem tenho o prazer?” Como se o burguês não considerasse seu vizinho proletário digno de um cumprimento, dada sua inferioridade social. Naquele momento, já se insinuava a arrogância do personagem intelectual classe média.   

Pelo lado do personagem bronco, reparamos depois de um tempo que sua postura, apesar da falta de polimento, é sempre mais amistosa, quase querendo iniciar uma amizade. Defende o tio deficiente quando o julgou ofendido, oferece presentes e flores, apresenta depois uma bela namorada e consegue interagir com a filha do casal burguês, o que o próprio pai não conseguia. Apesar de no início parecer ameaçador revela-se depois mais generoso e afetivo.

O final cai como um soco em nossa sensibilidade distraída e identificada com aqueles que são detentores da máscara de respeito e bom gosto. Inverte nossa expectativa e inverte nossos valores. O fetichismo das imagens em contraste com a arquitetura-verdade de Le Corbusier e do Modernismo. Apesar dos sinais, na realidade nos recusávamos a enxergar naqueles que julgamos nossos pares atitudes distintas das aparências que a classe média cultiva para si. Aparências tão hipócritas quanto legitimadoras do status quo e suas diferenças de classes.

O Homem ao Lado é um grande filme que nos confronta no espelho.




quinta-feira, 20 de setembro de 2018

O QUARTO DE JACK

(“Há lugares demais no mundo. Há menos tempo, porque o tempo tem de ser espalhado bem fininho por todo lugar, como manteiga.”)




O QUARTO DE JACK (Room), produção canadense-irlandesa de 2015, entre os filmes que assisti nos últimos anos é um dos que mais me surpreendeu. Não esperava que fosse tão bom.

O diretor Lenny Abrahamson e a roteirista Emma Donoghue, autora do próprio romance em que se baseia o filme, conseguiram, com um resultado muito bacana, combinar drama familiar, mistério, suspense, crítica social e nossa capacidade de enternecimento pelas crianças. Pode-se dizer que esse último fator é o mais destacado. Ao lado da interpretação oscarizada da atriz Brie Larson como Joy Newsone, a mãe do menino, atuação muito legal, e a par da química excepcional que rolou entre ambos, no entanto é o ator mirim Jacob Tremblay como Jack que rouba quase todas as cenas e sobre cujo olhar inocente, irresistível à nossa comoção, o filme se estrutura.

Uma observação: esse é um filme sobre o qual comentários não devem se alongar. Quanto menos spoilers melhor. Portanto, se você ainda não viu a fita, pare tudo, vá lá, assista ao filme, enjoy the program e volte para prestigiar este modesto espaço.

Quase todo o desenrolar de O Quarto de Jack é acompanhado pela ótica do pequeno menino de cinco anos, o próprio Jack. Mesmo quando ele não é o protagonista direto da ação, está quase sempre por perto, espreitando, atento, observando com seu olhar curioso. Ao mesmo tempo testemunhamos a luta da mãe, seus conflitos, sua obstinação em proteger e preparar o filho para um mundo que ele desconhece.

A primeira parte do filme é puro suspense. Pelo ponto de vista de Jack compartilhamos sua crença naquele mundo que lhe foi apresentado. Uma realidade na qual o quarto é um personagem importante. E depois o momento em que suas ilusões são questionadas e sua vida de criança precisa amadurecer e ganhar coragem para sobreviver.

Na segunda parte, quando praticamente começa a descobrir o mundo real - a descoberta do mundo pelos olhos de uma criança - simples visões de postes e fios, árvores e nuvens são quase capazes de nos levar às lágrimas.

A liberdade traz novos desafios para a mãe e o menino.

Acompanhamos as dificuldades de Joy, sempre ao lado do filho, em se readaptar à vida da qual fora afastada, os conflitos familiares e o enfrentamento de preconceitos e juízos morais por parte de quem não sofreu na pele o drama do qual foi vítima.

Para Jack, à medida que vai se inserindo no novo mundo muita coisa lhe parece estranha, e ao mesmo tempo é sensível ao momento da mãe, como na cena em que a bela melodia do piano da trilha sonora conduz seus pensamentos:

“Há lugares demais no mundo. Há menos tempo, porque o tempo tem de ser espalhado bem fininho por todo lugar, como manteiga. Todas as pessoas dizem: Rápido. Vamos depressa. Aperte o passo. Termine agora. Mãe estava com pressa de chegar ao céu, mas me esqueceu. Boba mãe. Então os ETs a jogaram de volta pra cá, e a quebraram.”

Por fim, Jack e sua mãe foram obrigados a fazer uma última visita ao Quarto. Precisavam enterrar no passado o trauma que vivenciaram juntos e o menino se despedir de um lado afetivo ainda presente em suas lembranças. Para o pequeno Jack, aquele espaço, onde realidade e fantasia se confundiam e moldavam o mundo que ele conhecia até então, deixou marcas contraditórias em seu espírito. Contradições que a liberdade da qual passa a usufruir exige a ultrapassagem e o abandono das referências carinhosas que marcaram sua infância naquele universo entre quatro paredes.




sexta-feira, 18 de maio de 2018

O TALENTOSO RIPLEY

(“Eu sempre achei que seria melhor ser um alguém falso que um ninguém verdadeiro.”)



 


Vivi a experiência de ser proprietário de videolocadora. Eu e minha mulher atendíamos no balcão. Foi uma grande escola. Sobre cinema e sobre a espécie humana. Minha esposa gosta de comentar que aprendeu “a conhecer as pessoas”.

Certa ocasião duas amigas se encontraram em nossa loja. Depois dos cumprimentos, uma delas, uma senhora de mais idade, perguntou: “E então? Tens ido aos Estados Unidos?” A outra, uma mulher interessante, rica, gay, bela e charmosa respondeu, com uma classe que sempre nos impressionava: “Não. Prefiro a Europa. Estou apaixonada por Positano. América já não me seduz.” Achamos o máximo aquela resposta.

O TALENTOSO RIPLEY (The Talented Mr. Ripley), de 1999, um clássico do final do século XX, direção de Anthony Minghella, é um filme sobre americanos para quem “América já não seduz”.

É também um filme sobre quem despreza. Cate Blanchett, no papel de Meredith Logue, filha de um rico industrial do ramo têxtil, explica melhor conversando com Matt Damon (Tom Ripley fazendo-se passar por Dickie Greenleaf) na escadaria da Plaza España, na Roma dos anos 50: “A verdade é que, se você teve dinheiro a vida toda, mesmo desprezando-o, e nós desprezamos, concorda? você só fica à vontade entre gente que tem e despreza.”

Além de Meredith, temos uma turma de personagens que também desprezam, consumindo na Itália, sem nenhum pudor, as mesadas enviadas pelos pais ricos: Dickie Greenleaf (Jude Law), filho de um milionário do ramo naval responsável por contratar Tom Ripley, como suposto amigo do filho, para convencer Dickie a voltar para a América; Marge Sherwood (Gwyneth Paltrow), escritora, namorada do rapaz milionário; e Freddie Milles (Philip Seymour Hoffman), amigo de Dickie, bon vivant, especialista em gastar mesadas.

No meio deles está Tom Ripley (Matt Damon). Esse não despreza; pelo contrário, mataria por isso.

Um dos principais méritos do filme, além de sua qualidade, é apresentar a obra da grande escritora norte-americana Patricia Highsmith e seu principal personagem de vários livros, o anti-herói Tom Ripley, um sujeito com muitas habilidades e moral tanto enviesada quanto particular.

Essa é a segunda adaptação de O TALENTOSO MR. RIPLEY, de Highsmith. A primeira foi O SOL POR TESTEMUNHA (Plein Soleil), filme francês de René Clément, de 1960, com Alain Delon no papel de Tom Ripley. Outros bons filmes também exploraram o universo de Highsmith, com ou sem Ripley. Em especial Pacto Sinistro (Strangers on a Train), de Alfred Hicthcock, e o recente Carol, de Todd Haynes, estrelado por Cate Blanchett, baseado no livro onde a própria autora cria uma ficção baseada em experiências pessoais.

The Talented Mr. Ripley é a obra mais famosa de Patricia Highsmith e onde Tom Ripley faz sua estreia, livro que elegi como integrante do meu rol afetivo de leituras, aqueles que são nossos favoritos. A escritora é um dos maiores nomes da literatura policial psicológica e seu talento extrapola os limites do gênero. Seu personagem emblemático, o amoral Tom Ripley, move-se por um universo criado pela escritora onde claustrofobia e apreensão são conceitos sempre presentes, conforme observou o renomado escritor inglês Graham Greene, outro mestre da literatura de suspense. Por esses caminhos Highsmith vai a fundo na investigação do lado obscuro da alma humana. Aqueles recônditos, além da moral, onde nossas motivações, às vezes confusas, às vezes contraditórias, convergem para um único objetivo: nós mesmos. Sombrio, mas humano, sincero. Existe sinceridade maior que o egoísmo?

Assim é Tom Ripley. Um cara que pensa em se dar bem, não importam os meios. Em O Talentoso Ripley ele se move entre jovens burgueses ricos e desocupados, admirando-os e invejando-os, e ao mesmo tempo cresce um sentimento de revolta por considerar que aqueles filhinhos de papai, que passam depois a recusar sua companhia, não merecem aquela vida rica de ócio e prazer na Europa, alheios à luta pela sobrevivência na América, e que ele sim, ele, Tom Ripley, com suas habilidades, é que mereceria aquele estilo de vida. Ele saberia valorizar e deveria ter nascido para aquilo. Como a vida é injusta, como não é ele o privilegiado? “Eu sempre achei que seria melhor ser um alguém falso que um ninguém verdadeiro”, repete para si mesmo, justificando a correção radical que talha com enorme astúcia, talento e fúria contra a injustiça do mundo.

No filme de Anthony Minghella, as locações não são na Positano de nossa amiga da locadora, mas na paradisíaca e fictícia Mongibello, costa da Sicília, mais Roma, Veneza e Nova York. A versão do diretor inglês captura o espírito do livro, o pensamento individualista e contraditório de Ripley, sua ambição, o clima de tensão que se estabelece aos poucos e acentua-se após o evento drástico que altera a narrativa, assim como a elegância da ambientação e as personalidades dos protagonistas, desenvolvidas sem decepcionar a profundidade conferida por Highsmith. O filme é muito bom, assiste-se sempre com muito prazer.

A versão de Minghella, como praticamente em quase todas as adaptações das páginas da literatura para as telas, tem diferenças em relação ao romance, mas é fiel à essência da obra. Algumas dessemelhanças são mais significativas. No filme Ripley é assumidamente gay. No livro, o relacionamento entre os dois personagens principais, Ripley e Dickie Greenleaf, é pontuado por um viés homossexual que nunca se confirma, fica sempre nas entrelinhas (assim como em Pacto Sinistro); e no caso de Tom Ripley ele sofre por não assumir, por não entender direito os sentimentos que nega com veemência. Na sequência do barco, momento-chave da narrativa, Minghella a apresenta como o clímax violento de um desentendimento, e depois, a troca de identidades é colocada como uma possibilidade aproveitada por Tom; no livro a escritora expõe a irritação, a revolta (com o mundo, com Dickie, com a rejeição) e a premeditação que surge como um insight perverso e brilhante.

O filme centra-se principalmente na ambição de Ripley, na troca de identidades, no desejo do personagem de ser “alguém” a qualquer custo, o que aparece sugerido em cenas da primeira parte, como quando ele finge ser Dickie Greenleaf, ao conhecer Meredith Logue, e depois ao experimentar as roupas do próprio, cena comum no filme e no livro. Na obra original, Patricia Highsmith enfatiza o caráter enviesado de Tom Ripley e os caminhos tortuosos por onde sua mente o leva. A psicologia do personagem é dissecada como se um cirurgião observasse o fluxo do sangue correndo pelas veias abertas de um cérebro implacável, inquieto, contraditório, pulsante, intenso, sofrido, sensível e sobretudo empenhado no que é melhor para si.

Em O Sol Por Testemunha, René Clément filma uma versão bem mais livre em relação ao romance original. Um bom policial francês, coerente com a essência do livro em que se baseou. Mas tanto o filme de Clément quanto o de Minghella têm um ponto em comum significativo: os finais são moralistas. No primeiro Ripley é desmascarado pela justiça institucional; no segundo é castigado por sua angústia e pelos caminhos infelizes que seus crimes o levam. Já no romance de Highsmith, ao perceber no final que não será pego, Tom Ripley está mais esfuziante do que nunca, comemorando seu sucesso e solto para novas aventuras nos livros que viriam a seguir.

O mundo particular de Patricia Highsmith, nas páginas ou nas telas, é sempre uma experiência pela qual não se passa incólume. A capacidade de criar uma realidade própria e ao mesmo tempo universal é marca dos grandes escritores. Some-se a criação de um personagem como Tom Ripley, ícone da literatura policial, representação do que possuímos de mais humano e assustador, e temos a prova incontestável da genialidade da escritora norte-americana.