(“Descobre, com o tempo, que não foi castigado. Ao contrário, prospera.”)
Qual
seria o melhor filme de Woody Allen? Impossível dizer. São tantos grandes títulos.
Se cada um fizesse sua própria lista, teríamos alinhados "Manhattan", "Noivo
Neurótico, Noiva Nervosa", "A Última Noite de Boris Grushenko", "Match Point", "A Outra", "Zelig", "Meia Noite em Paris", "Desconstruindo Harry", etc. Mas um,
certamente, seria presença certa em quase todas as relações: CRIMES E PECADOS (Crimes and Misdemeanors),
de 1989. Por sinal aparece em muitas listas de melhores de todos os tempos.
Direção e roteiro de Woody Allen e fotografia de Sven Nykvist, profissional que
trabalhava com Bergman.
O
filme apresenta uma série de personagens antológicos. Um oftalmologista que
teme o olho de Deus. Um rabino cuja fé inabalável o faz acreditar num sentido superior da vida e depois fica cego. Um documentarista (enxerga a
realidade pelo olho da câmera) acreditando que valores fazem sentido. Um
filósofo revelador das contradições da religião e da moral e, apesar disso, adota
uma atitude positiva perante a vida, mas acaba se suicidando. Outros
personagens são também interessantes: a amante enlouquecida, a irmã incapaz de ter um relacionamento, o irmão barra-pesada, a menina matando as
aulas da tarde para assistir clássicos do cinema na companhia do tio, o
produtor de TV com sucesso mas sem conteúdo, a garota que fantasiamos e depois fica
com o cara idiota. Enfim, a gama de situações é extremamente rica.
Woody
Allen é Cliff Stern, cineasta e documentarista. Orgulha-se de seu trabalho
sério e está desenvolvendo um projeto pessoal: um documentário sobre o Prof.
Levy, o filósofo idoso questionador da religião e da moral. No entanto, como
precisa de dinheiro, visto ser considerado um “loser”, é obrigado a filmar
um especial sobre a vida de seu cunhado, Alan Alda (Lester), um famoso produtor
de TV, comercial, bem-sucedido e arrogante. Isso é um dilema para Cliff, ter
que aceitar o jogo comercial. Além disso, mesmo casado, apaixona-se por Mia
Farrow (Halley Reed), uma produtora também cortejada por Lester, fechando o vértice do triângulo amoroso (um triângulo desdobrado em várias
pontas). Cliff não suporta Lester, tanto por este ter sucesso financeiro, como
também considera o cunhado “vendido” para o sistema. Existe uma ingenuidade
implícita no pensamento do cineasta: como ele se julga superior a Lester, um
idiota no seu entender, e afinal é ele, Cliff, quem tem o projeto do
documentário com o Prof. Levy, algo muito mais interessante que as bobagens do
cunhado, acredita na preferência de Halley por sua pessoa. Acabará por descobrir que a
vida não segue um sistema de valores e pode não ter sentido nenhum.
O
Prof. Levy é outro achado. Aparece sempre pela imagem filmada pelo
documentarista. "Na verdade, somos feitos
da soma total das nossas escolhas.”
Na
outra estória que segue em paralelo, Martin Landau é Judah Rosenthal,
oftalmologista conceituado. Por trás da fachada de cidadão respeitável,
mantém um caso com uma amante (Angelica Houston) e realizou algumas operações
não muito éticas na contabilidade da empresa da qual é sócio. A amante está
possessa, ameaça contar o caso para a esposa do médico e revelar as ilicitudes
na empresa. A vida de Judah está prestes a desmoronar ("Consegui manter-me afastado do mundo real, mas de repente ele me
encontrou”) e o médico precisa apelar ao irmão barra-pesada para resolver o
problema. Fica dividido entre os conselhos sensatos do amigo rabino, Ben, ou a
objetividade insensível do irmão, que acaba falando mais alto.
Apesar
de outro viés, em "Crimes e Pecados" há ecos de "Crime e Castigo", de
Dostoiévski, romance e autor preferidos de Woody Allen. (Na minha pequena lista
de clássicos da literatura que li, também considero meus favoritos). O diretor
nova-iorquino retomaria este tema, com brilhantismo, em 2005, com "Match
Point".
Ao
final, as duas estórias do filme se cruzam numa festa de casamento. Woody Allen
está sozinho numa sala semiescura, cabisbaixo, um copo de whisky na mão,
sentado ao lado de um piano parcialmente coberto pela penumbra da sala,
pensando no desfecho do seu caso. "Isolado
da festa? Como eu", pergunta Martin Landau, que chega com um cigarro na
mão, procurando um local sossegado para relaxar, e senta-se ao lado de Woody
Allen. "Ben me disse que você faz filmes",
puxando assunto com o cineasta. "Tenho
uma ótima estória de assassinato. Um grande roteiro. Mas minha estória tem um
estranho desenlace." O médico passa a contar a experiência de um homem bem-sucedido,
consumido pelo remorso de seu crime, alguém que teve uma educação religiosa
muito rígida, e chega ao final da narrativa com o semblante pensativo, puxando
as recordações, alinhando calmamente as palavras:
“Então, um dia, ele acorda...o sol está
brilhando e sua família está ao seu redor. Misteriosamente, a crise
desapareceu. Ele leva a família para a Europa, e descobre, com o tempo, que não
foi castigado. Ao contrário, prospera. O crime é atribuído a outro, um
vagabundo que já matou outras pessoas. Uma a mais não importa. Agora, ele está
livre. Sua vida volta completamente ao normal, ao seu mundo seguro de riquezas
e privilégios.”
“É, mas ele pode mesmo voltar ao que
era?”, pergunta Woody Allen.
“Bem, as pessoas carregam seus pecados
consigo”, responde Martin Landau. “Às vezes, o que fez o atormenta, mas passa.
E com o tempo, tudo acaba. Isso é a realidade. Na realidade, racionalizamos.
Nós negamos, senão, como continuar vivendo?”
Woody
Allen encerra sua fábula brilhante, engraçada, profunda e incômoda com os
ensinamentos do Professor Levy:
“Tudo se dá de maneira tão
imprevisível, tão injusta, que a felicidade humana não parece ter sido incluída
no projeto da Criação. Somos nós, com nossa capacidade de amar, que atribuímos
um sentido a um Universo indiferente. Assim mesmo, a maioria dos seres
humanos parece ter a habilidade de continuar lutando e até de encontrar prazer
nas coisas simples, como sua família, seu trabalho, e na esperança que as
futuras gerações alcancem uma compreensão maior.”
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