domingo, 18 de outubro de 2015

CRIMES E PECADOS

(“Descobre, com o tempo, que não foi castigado. Ao contrário, prospera.”)





Qual seria o melhor filme de Woody Allen? Impossível dizer. São tantos grandes títulos. Se cada um fizesse sua própria lista, teríamos alinhados "Manhattan", "Noivo Neurótico, Noiva Nervosa", "A Última Noite de Boris Grushenko", "Match Point", "A Outra", "Zelig", "Meia Noite em Paris", "Desconstruindo Harry", etc. Mas um, certamente, seria presença certa em quase todas as relações: CRIMES E PECADOS (Crimes and Misdemeanors), de 1989. Por sinal aparece em muitas listas de melhores de todos os tempos. Direção e roteiro de Woody Allen e fotografia de Sven Nykvist, profissional que trabalhava com Bergman.

O filme apresenta uma série de personagens antológicos. Um oftalmologista que teme o olho de Deus. Um rabino cuja fé inabalável o faz acreditar num sentido superior da vida e depois fica cego. Um documentarista (enxerga a realidade pelo olho da câmera) acreditando que valores fazem sentido. Um filósofo revelador das contradições da religião e da moral e, apesar disso, adota uma atitude positiva perante a vida, mas acaba se suicidando. Outros personagens são também interessantes: a amante enlouquecida, a irmã incapaz de ter um relacionamento, o irmão barra-pesada, a menina matando as aulas da tarde para assistir clássicos do cinema na companhia do tio, o produtor de TV com sucesso mas sem conteúdo, a garota que fantasiamos e depois fica com o cara idiota. Enfim, a gama de situações é extremamente rica.

Woody Allen é Cliff Stern, cineasta e documentarista. Orgulha-se de seu trabalho sério e está desenvolvendo um projeto pessoal: um documentário sobre o Prof. Levy, o filósofo idoso questionador da religião e da moral. No entanto, como precisa de dinheiro, visto ser considerado um “loser”, é obrigado a filmar um especial sobre a vida de seu cunhado, Alan Alda (Lester), um famoso produtor de TV, comercial, bem-sucedido e arrogante. Isso é um dilema para Cliff, ter que aceitar o jogo comercial. Além disso, mesmo casado, apaixona-se por Mia Farrow (Halley Reed), uma produtora também cortejada por Lester, fechando o vértice do triângulo amoroso (um triângulo desdobrado em várias pontas). Cliff não suporta Lester, tanto por este ter sucesso financeiro, como também considera o cunhado “vendido” para o sistema. Existe uma ingenuidade implícita no pensamento do cineasta: como ele se julga superior a Lester, um idiota no seu entender, e afinal é ele, Cliff, quem tem o projeto do documentário com o Prof. Levy, algo muito mais interessante que as bobagens do cunhado, acredita na preferência de Halley por sua pessoa. Acabará por descobrir que a vida não segue um sistema de valores e pode não ter sentido nenhum.

O Prof. Levy é outro achado. Aparece sempre pela imagem filmada pelo documentarista. "Na verdade, somos feitos da soma total das nossas escolhas.”

Na outra estória que segue em paralelo, Martin Landau é Judah Rosenthal, oftalmologista conceituado. Por trás da fachada de cidadão respeitável, mantém um caso com uma amante (Angelica Houston) e realizou algumas operações não muito éticas na contabilidade da empresa da qual é sócio. A amante está possessa, ameaça contar o caso para a esposa do médico e revelar as ilicitudes na empresa. A vida de Judah está prestes a desmoronar ("Consegui manter-me afastado do mundo real, mas de repente ele me encontrou”) e o médico precisa apelar ao irmão barra-pesada para resolver o problema. Fica dividido entre os conselhos sensatos do amigo rabino, Ben, ou a objetividade insensível do irmão, que acaba falando mais alto.

Apesar de outro viés, em "Crimes e Pecados" há ecos de "Crime e Castigo", de Dostoiévski, romance e autor preferidos de Woody Allen. (Na minha pequena lista de clássicos da literatura que li, também considero meus favoritos). O diretor nova-iorquino retomaria este tema, com brilhantismo, em 2005, com "Match Point".

Ao final, as duas estórias do filme se cruzam numa festa de casamento. Woody Allen está sozinho numa sala semiescura, cabisbaixo, um copo de whisky na mão, sentado ao lado de um piano parcialmente coberto pela penumbra da sala, pensando no desfecho do seu caso. "Isolado da festa? Como eu", pergunta Martin Landau, que chega com um cigarro na mão, procurando um local sossegado para relaxar, e senta-se ao lado de Woody Allen. "Ben me disse que você faz filmes", puxando assunto com o cineasta. "Tenho uma ótima estória de assassinato. Um grande roteiro. Mas minha estória tem um estranho desenlace." O médico passa a contar a experiência de um homem bem-sucedido, consumido pelo remorso de seu crime, alguém que teve uma educação religiosa muito rígida, e chega ao final da narrativa com o semblante pensativo, puxando as recordações, alinhando calmamente as palavras:

“Então, um dia, ele acorda...o sol está brilhando e sua família está ao seu redor. Misteriosamente, a crise desapareceu. Ele leva a família para a Europa, e descobre, com o tempo, que não foi castigado. Ao contrário, prospera. O crime é atribuído a outro, um vagabundo que já matou outras pessoas. Uma a mais não importa. Agora, ele está livre. Sua vida volta completamente ao normal, ao seu mundo seguro de riquezas e privilégios.”

“É, mas ele pode mesmo voltar ao que era?”, pergunta Woody Allen.

“Bem, as pessoas carregam seus pecados consigo”, responde Martin Landau. “Às vezes, o que fez o atormenta, mas passa. E com o tempo, tudo acaba. Isso é a realidade. Na realidade, racionalizamos. Nós negamos, senão, como continuar vivendo?

Woody Allen encerra sua fábula brilhante, engraçada, profunda e incômoda com os ensinamentos do Professor Levy:

“Tudo se dá de maneira tão imprevisível, tão injusta, que a felicidade humana não parece ter sido incluída no projeto da Criação. Somos nós, com nossa capacidade de amar, que atribuímos um sentido a um Universo indiferente. Assim mesmo, a maioria dos seres humanos parece ter a habilidade de continuar lutando e até de encontrar prazer nas coisas simples, como sua família, seu trabalho, e na esperança que as futuras gerações alcancem uma compreensão maior.”





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