sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

EASY RIDER

(“Nunca diga a alguém que ele não é livre porque ele vai matar para provar que é.”)

                                         



Há alguns milhares de anos perdemos algo chamado inocência...desde então sentimos medo dela.

1973. Porto Alegre. Colégio Anchieta. Aula de Filosofia do Prof. João. Uma garotada na faixa dos quinze anos é levada para o auditório do colégio para uma sessão de cinema. Só que, para não aloprar com a gurizada, nos apresentaram um filme editado, sem as sequências iniciais de sexo, drogas e rock'n’roll, indispensáveis para se entender toda a estória. Me lembro, de qualquer jeito, que ficamos muito impressionados. Aliás, aquelas aulas de filosofia sempre nos impressionavam. Tudo era uma grande revelação. Consumismo, sistema, massificação, alienação eram termos citados para nós pela primeira vez e traziam uma grande carga de impacto. Assim como o filme incompleto que nos apresentaram. Mesmo pirralhos, sem saber nada da vida, sentíamos que alguma coisa forte e significativa estava acontecendo na tela e na vida real. O filme?

SEM DESTINO (Easy Rider), de 1969. Produzido por Peter Fonda. Dirigido por Dennis Hopper. Roteiro de Fonda, Hopper e Terry Southern. Com Peter Fonda, Dennis Hopper e Jack Nicholson. Clássico maior da contracultura. O legado de Fonda e Hopper para o cinema e para a cultura contemporânea.

Uma viagem transgressora pelo coração da América conservadora e ao mesmo tempo em discussão com um sistema alternativo de valores. O mais emblemático dos road movies. Peter Fonda e Dennis Hopper, depois com Jack Nicholson, a bordo de duas Harley-Davidsons, embalados pela trilha sonora de Jimi Hendrix, Steppenwolf e The Band, entre outros, singrando o asfalto e deparando-se com toda a sorte de tipos. Um painel comovente e enérgico de uma época que questionava e batia de frente com uma sociedade enraizada em seus valores putrefatos.

As máquinas também são personagens principais. Em O Selvagem, com Marlon Brando, as motos eram um símbolo de rebeldia. Em Easy Rider, além de rebeldia, são principalmente um símbolo de liberdade.

Peter Fonda livra-se do relógio e junto com Dennis Hopper caem na estrada. Conseguiram dinheiro para sua aventura através de uma operação simples de venda de droga. Fonda é Wyatt ou Capitão América, pelas cores da bandeira americana na moto, jaqueta e capacete, também alusão ao personagem dos comics representativo do espírito americano. Hopper é Billy. Wyatt é pensativo e Billy é a transgressão espontânea, inata.

São dois cowboys num western sobre rodas, como sugere a paisagem do Monument Valley, palco glorioso dos filmes de John Wayne e John Ford, e o encontro com os primeiros personagens que cruzam seu caminho, no início da jornada até o Mardi Gras, em New Orleans, e além: uma simpática família de fazendeiros, que ao mesmo tempo em que consertam a ferradura de um cavalo, os motoqueiros estão reparando a roda de uma das motos. Peter Fonda comenta com o chefe da família, na mesa do almoço: "Sua fazenda é legal. Nem todos podem viver da terra. Você trabalha no que é seu, quando quer. Deveria se orgulhar."

Depois, seguindo viagem, dão carona a um hippie. Óculos de aro fino, bandana na cabeça, bigode comprido, roupas características. Intelectual hippie. À noite, Billy pergunta de onde ele é. O cara responde: "De uma cidade. Não importa qual, são todas iguais. Por isso estou aqui. Longe daquela cidade, e é onde quero estar." Acabam numa comunidade alternativa onde as pessoas plantam para comer. Quase uma aldeia indígena. Curtem a comunidade, as garotas, mas ainda são estranhos. "Este poderia ser o lugar certo, mas seu tempo está acabando", fala para Wyatt o amigo hippie, líder do grupo, praticamente um sacerdote da tribo. Que ainda lhe entrega um presente, um pequeno pacote: "Quando estiver no lugar certo, com as pessoas certas, repartam isto".

A próxima parada dos cowboys, forasteiros que provocam a desconfiança dos nativos, é a cadeia de uma pequena cidade, onde são presos por “desfilar sem permissão” (estavam apenas seguindo a apresentação da bandinha da cidade) e onde conhecem George Hanson (Jack Nicholson), preso contumaz por embriaguez. Advogado que já trabalhou com a União Americana das Liberdades Civis e que simpatiza com a dupla. Consegue-lhes a liberdade por uma pequena fiança e resolve acompanhá-los de carona até New Orleans, usando um ridículo capacete de futebol americano.

Numa das primeiras cenas do filme, a dupla de motoqueiros não conseguiu pousada num motel de beira de estrada porque o gerente assustou-se com a aparência deles, esses cabeludos perigosos. Desde então passaram a dormir ao relento, no mato, em volta de uma pequena fogueira, como verdadeiros cowboys. Os diálogos que travam nessas noites, entre uma marijuana e outra, são um dos pontos altos do filme. Principalmente entre George e Billy. Como quando, “chapados”, conversam sobre OVNIs.

George discursa: "Eles são pessoas como nós, do nosso sistema solar. Só que a sociedade deles é mais evoluída. Não tem guerras, não tem um sistema monetário nem líderes, porque cada homem é um líder. Com a tecnologia que têm, eles podem se alimentar, se vestir, morar e se transportar com igualdade e sem esforço."

Ele continua, após Billy objetar como quem não está entendendo nada: "Nossos líderes decidiram acobertar as informações que seriam um choque tremendo para nosso sistema antiquado. Os venusianos encontram gente de todas as classes sociais e fazem o papel de conselheiros. Pela primeira vez, o homem terá um controle divino sobre o seu próprio destino. Ele terá a oportunidade de transcender e evoluir com alguma igualdade para todos." George para de falar, sorrindo, olhar vago para Wyatt. O baseado apagado e a cara de quem acaba de aterrissar do espaço sideral.

Em outro momento, nessas conversas iluminadas por uma fogueira, George, mais sério, explica certas coisas para Billy. Este se queixa das hostilidades, pois recém tinham sido praticamente corridos de uma lanchonete da cidadezinha por onde passavam, embora tenham atraído a atenção das meninas:

- Todos viraram covardes, é isso. Nós nem pudemos ficar num hotel de segunda, aliás, um motel de segunda! O cara achou que a gente fosse matá-lo. Eles têm medo.
- Não têm medo de vocês, mas do que vocês representam – responde George.
- Cara, pra eles só representamos alguém que devia cortar o cabelo.
- Não. Para eles vocês representam a liberdade.
- E qual o problema? Liberdade é legal!
- É verdade, é legal mesmo, mas falar dela e vivê-la são duas coisas diferentes. É difícil ser livre quando se é comprado e vendido no mercado.

George continua:
- Mas nunca diga a alguém que ele não é livre porque ele vai tratar de matar e aleijar para provar que é. Eles falam sem parar de liberdade individual mas, quando veem um indivíduo livre, ficam com medo.
- Eu não boto ninguém pra correr de medo.
- Não. Você é que corre perigo. 

George será a primeira vítima do reacionarismo e do medo.

Chegam a New Orleans apenas Wyatt e Billy. Por insistência deste último dirigem-se ao bordel indicado por George, como uma deferência ao amigo. Fazem amizade com duas garotas, Karen e Mary, e misturam-se os quatro com a população no Mardi Gras.

Divertem-se na festa da cidade e depois vão passear no cemitério. Lá, num cenário gótico, entre túmulos e mausoléus, como se fosse uma cerimônia religiosa, Wyatt reparte o presente que havia ganho do hippie. “...no lugar certo, com as pessoas certas...” Tomam as pílulas e embarcam numa “viagem” mística, catártica, entre orações, lamentos, visões fugazes e sexo. Como tragados por um redemoinho de sensações que transcende os espíritos, corpos e ancestrais.

É nessa experiência que Wyatt parece ter uma revelação enigmática, de sentido ambíguo, contraditório (sobre eles ou sua geração), que dividirá à noite com um surpreso Billy, que se vangloriava do dinheiro que tinham conseguido como se isso significasse ser livre, os dois conversando ao relento: “You know, Billy? Nós estragamos tudo.”  

Quando a jornada dos dois parceiros é interrompida bruscamente, Billy agonizante ameaçando os agressores fugitivos que em seguida dão meia-volta (“Vou pegá-los! Estamos prontos!” como se essas últimas palavras orgulhosas, ele estirado no chão, representassem os novos ventos), a emblemática cena da moto de Wyatt, símbolo da liberdade e da bandeira americana, atingida por um tiro de espingarda e em chamas, é o desfecho violento de um grande filme.

Mataram a liberdade. O Sistema versus a Contracultura.

Mas a Contracultura sobreviveu.

Muitas conquistas daqueles anos 60 e 70 foram incorporadas ao nosso comportamento. Até mesmo a aula de filosofia que citei no início da postagem estava dentro desse contexto. Não se pode dizer que o movimento tenha sido derrotado. Trouxe contribuições que permanecem até hoje, inclusive à custa de sacrifícios, como testemunha a cena final de Easy Rider. Mas aqueles sonhos de vida em uma sociedade livre, plena e solidária continuam muito distantes. A jornada sem destino dos cavaleiros do asfalto ainda tem um longo caminho pela frente.







sábado, 21 de novembro de 2015

AS AVENTURAS DE ROBIN HOOD

(“Estranho? Por eu ter compaixão pelos desamparados?”)

(“Não. É estranho por querer fazer algo a respeito.”) 

                                                    
                                                          
                                                       


AS AVENTURAS DE ROBIN HOOD, de 1938, com Errol Flynn e Olivia de Havilland, do mesmo diretor de Casablanca, Michael Curtiz, traz aspectos muito interessantes. 

Como a questão da tributação. No tempo de Robin Hood, na Idade Média, o povo sofria com impostos exorbitantes, chegava a passar fome, era maltratado e explorado. Robin Hood tirava dos ricos para dar aos pobres. Já nos dias de hoje, em nossos estados capitalistas contemporâneos, com a concentração de renda cada vez maior, muitas vezes temos a impressão que a tributação tira dos pobres para dar aos ricos (onde está o imposto progressivo sobre o capital?). Vivemos numa sociedade global cujos índices de concentração da riqueza aproximam-se cada vez mais de padrões antigos e medievais. Qualquer semelhança dos dias de hoje com a época de nosso herói parece não ser mera coincidência.

Outro aspecto é a luta contra a desigualdade e opressão. A mitologia de Robin Hood nasceu de antigas lendas reproduzidas oralmente. Em todas existe uma recorrência sobre a dupla faceta do personagem, ambas retratadas no filme: o justiceiro social que redistribuía a renda à margem da lei e o revolucionário empenhado em restabelecer a legitimidade do poder. Robin e seu bando lutavam para que o monarca justo e legítimo, Ricardo Coração de Leão, preso no exterior, recuperasse o trono usurpado pelo seu irmão, o tirano Príncipe João.

É esta versão para o cinema de 1938, baseada no fundamental das lendas antigas e criando sobre esse fundo, que praticamente definiu e fixou os paradigmas e referências que passaram a ser utilizados em quase todas as inúmeras versões que o cinema e a TV produziram sobre o personagem: a cena inicial da caçada ilegal, a luta com João Pequeno e o encontro com Frei Tuck, a destreza do herói com o arco e flecha, a emboscada disfarçada de torneio para arqueiros, o plano para salvar Robin, o romance com Lady Marian, o figurino colorido e o ritmo de aventura, principalmente, marcando a alta voltagem do entretenimento.

Até mesmo a trilogia original de Star Wars recebeu influências desse clássico. O ataque do bando de Robin às tropas do vilão Sir Guy de Gisbourne, na floresta de Sherwood, e o duelo final de espadas entre o herói e o mesmo Sir Guy encontram similitudes no ataque dos Ewoks aos Stormtroopers, em O Retorno do Jedi, e no duelo final de sabres de luz entre Darth Vader e Luke Skywalker. 

Apesar de ser um filme sem os efeitos especiais de hoje, com outra estética, As Aventuras de Robin Hood ainda é um divertimento muito legal. Uma das maiores lendas sobre ideários de justiça, o herói fora da lei está muito bem representado nesse belo exemplar dos clássicos de aventura, com aquele sabor juvenil que quase não encontramos mais.








domingo, 8 de novembro de 2015

MATCH POINT

(“O homem que disse prefiro ter sorte a ser bom entendeu o significado da vida.”)

                                        
                                           


MATCH POINT (2005) permanece como uma das obras-primas de Woody Allen no século atual. Com esse filme ele executou um dueto Crime e Castigo, composto com Crimes e Pecados, de 1989.

Alem de Dostoiévski, Match Point também recebeu influências do clássico Um Lugar ao Sol, de George Stevens, e de Mulheres Diabólicas, de Claude Chabrol, ambos os filmes sobre diferenças sociais.

Em Crime e Castigo, romance de Dostoiévski, o personagem Raskólnikov, assassino que com seu crime planejava alguma coisa maior em prol da sociedade, é preso e sofre o castigo da lei. Os personagens de Woody Allen, ao contrário, saem ilesos. No filme Crimes e Pecados o responsável pela impunidade é o “Universo indiferente”; em Match Point é o acaso. Em comum entre as três obras um crime violento, as implicações existenciais e morais e o sentimento da culpa e seus desdobramentos.

Em Match Point, Chris Wilton (Jonathan Rhys Meyers), assim como Raskólnikov, queria fazer alguma coisa importante em sua vida. “Contribuir”, como ele dizia. A motivação do seu crime, no entanto, acaba se dando pela mesma razão de Judah Rosenthal, de Crimes e Pecados: queriam apenas a manutenção de seus privilégios conquistados de uma maneira ou de outra.

Woody Allen frisa sua releitura de Dostoiévski. Numa cena em que Chris está lendo em seu quarto, o livro é o próprio Crime e Castigo. Noutro momento, quando seu cunhado se dirige ao pai, este faz menção a uma conversa com o próprio Chris sobre...Dostoiévski. Mas não é apenas o grande escritor russo que o diretor homenageia em seu filme. Quando os dois casais de protagonistas se encontram para ir ao cinema, o filme que está em cartaz numa das salas de Londres é Diários de Motocicleta, do brasileiro Walter Salles, sobre o famoso ídolo libertário Che Guevara.

Match Point é uma fita curiosa em comparação com a filmografia de Allen. Nessa obra, ele é “apenas” o diretor e roteirista. Não trabalha como ator. Em outros filmes semelhantes nesse aspecto quase sempre existe um personagem, ou a combinação de mais de um, que é o alter ego do diretor. Não é o caso desse drama.

O personagem principal é mais Raskólnikov que Woody Allen. Chris Wilton reconhece que acabou se acostumando a um determinado sistema de vida. Acomodou-se com a escalada social, dinheiro, segurança e esqueceu algum objetivo mais nobre. Como professor de tênis tornou-se amigo de Tom Hewett (Mathew Goode) e casou-se com sua irmã Chloe (Emily Mortimer), filhos de rica família londrina. Conseguiu um cargo importante na empresa do sogro. Seu futuro está assegurado. Pelo menos até que o affair com Nola Rice, a exuberante Scarlett Johansson, uma paixão avassaladora, não ponha tudo a perder.

A sequência dos assassinatos ao som de Otello, de Verdi, talvez seja a cena mais poderosa da carreira de Woody Allen. Uma recriação de Crime e Castigo, agora transposta para a Londres contemporânea, onde o personagem de Match Point é protagonista de uma composição cinematográfica refinada e impactante, transmitindo toda a carga dramática da ação e reação que envolve seu ato.

Diferente de Judah, Raskólnikov e Chris encontram um adversário à altura pela frente. Um inspetor de polícia com a mesma inteligência que fica a um passo de desmascarar toda a verdade. Principalmente no romance de Dostoiévski, desenrola-se um elaborado jogo de caçador e caça que se desenvolve na segunda metade do livro, servindo de inspiração para muitos filmes policiais que o cinema viria a produzir. Felizmente para os protagonistas, considerando as três obras relacionadas, o crime é atribuído a um terceiro, um marginalizado sem esperança. Raskólnikov acaba se entregando, corroído pela culpa; já os personagens de Woody Allen...

Outra cena recorrente na obra alleniana é o confronto do personagem com seus fantasmas. Em Match Point, quando Chris interage com a visão de suas vítimas, há momentos de interseção com Crime e Castigo: “Às vezes, os inocentes morrem para se atingir um objetivo maior." E com Crimes e Pecados: “Aprende-se a esconder a culpa sob o tapete e a seguir em frente. É preciso. Senão, ela soterra você.” “Seria bem apropriado se eu fosse preso e punido. Pelo menos seria um pequeno sinal de justiça. Uma pequena medida de esperança da possibilidade de sentido.”

Em sua reinterpretação de Crime e Castigo, Woody Allen acrescenta mais um elemento: o acaso ou sorte. O filme abre com uma bolinha de tênis sobrevoando a rede de um lado a outro da quadra. “Há momentos no jogo em que a bola bate no topo da rede e por um segundo ela pode ir para o outro lado ou voltar. Com sorte, ela cai do outro lado e você ganha. Ou talvez não caia e você perca.” Assim se decide a vida de Chris. Em vez de uma bolinha, um anel. No lugar da rede uma mureta separando o Tâmisa da calçada. O arremesso é feito. Match point ou derrota. Liberdade ou condenação. O imponderável decidindo nosso destino.

Considerado por muitos como o melhor filme de Woody Allen, inclusive pelo próprio autor, Match Point é uma das mais importantes produções neste início de século XXI. A ambientação londrina, a profundidade dos personagens, jovens e atraentes, as boas atuações, a bela fotografia, a trilha sonora composta por trechos de óperas, o roteiro brilhante e a direção inspirada de Woody Allen criam uma experiência cinematográfica que nos prende desde o início e fazem dessa obra uma peça a ser exibida com destaque nas nossas prateleiras de DVDs.




quinta-feira, 29 de outubro de 2015

CASABLANCA

(“Você me acha desprezível? Então você é o único em quem eu confio.”)




Perdi a conta de quantas vezes assisti CASABLANCA (1942). Presença assídua nas listas de melhores de todos os tempos. Com toda justiça.

Casablanca é o clássico dos diálogos inesquecíveis.

Uma das primeiras cenas é a seguinte. Peter Lorre (Ugarte) para Humphrey Bogart (Rick), no Rick's Bar:
- Rick, você me acha desprezível?
- Se pensasse em você...acharia.
- Então você é o único em quem eu confio.

Tem mais. A amante esquecida, enfurecida, para Rick, no balcão do bar:
- Onde você estava ontem à noite, que não me procurou?
- Faz tanto tempo que nem me lembro.
- E hoje à noite, podemos nos encontrar?
- Nunca planejo nada com tanta antecedência.

Em outro momento, Rick provoca o Capitão Louis Renault (Claude Rains):
- Aposto vinte mil francos como a caçada a Victor Laszlo não terminará aqui.
O Capitão Renault responde:
- Deixemos por dez. Sou apenas um pobre oficial corrupto.


E há, claro, a célebre cena do aeroporto em que Ingrid Bergman (Ilsa) pergunta "o que será de nós?" e Bogart responde:
- Sempre teremos Paris.

Uma frase dessas já seria suficiente para elevar um filme à condição de clássico, mas Casablanca é muito mais.

O curioso em Casablanca é que, diferente de outros grandes clássicos do cinema, não nasceu da mente privilegiada de algum gênio. Por exemplo, A Doce Vida é fruto do gênio de Fellini, Reds é um trabalho primoroso de Warren Beatty, O Sétimo Selo é o talento de Bergman, Rastros de Ódio é a assinatura de John Ford. Já Casablanca tomou forma através de uma química rara e extremamente feliz do trabalho de vários artistas, não gênios, mas talentosos. O que poderia ser um simples melodrama transformou-se num filme inesquecível, graças a vários fatores (muitos acreditam que o acaso teve papel considerável) e à combinação perfeita entre eles, talento e carisma da dupla de protagonistas e dos atores coadjuvantes, todos nomes de peso, direção segura de Michael Curtiz, elogiada fotografia em preto e branco, a trilha sonora, a bela música tema (As Time Goes By), a cenografia, a estória exótica e fascinante misturando romance e ideais libertários, luta contra o nazismo (a cena da Marseilleise é emocionante – alguns críticos consideram a melhor interpretação do hino francês em toda a história do cinema), diálogos geniais dos roteiristas (os irmãos Epstein, Howard Koch e Casey Robinson), a montagem extraordinária de Owen Marks que conseguiu dar coerência a um todo multifacetado. E principalmente, reiterando, o magnetismo do par central: o carisma e charme de Humphrey Bogart e a beleza delicada e pensativa de Ingrid Bergman.   

Como dizia o grande Billy Wilder sobre o filme, "a riqueza de seus enquadramentos e ambiguidades oferecem tantos desdobramentos, que sempre, quando se volta a vê-lo, é como se o assistíssemos pela primeira vez".





domingo, 18 de outubro de 2015

CRIMES E PECADOS

(“Descobre, com o tempo, que não foi castigado. Ao contrário, prospera.”)





Qual seria o melhor filme de Woody Allen? Impossível dizer. São tantos grandes títulos. Se cada um fizesse sua própria lista, teríamos alinhados "Manhattan", "Noivo Neurótico, Noiva Nervosa", "A Última Noite de Boris Grushenko", "Match Point", "A Outra", "Zelig", "Meia Noite em Paris", "Desconstruindo Harry", etc. Mas um, certamente, seria presença certa em quase todas as relações: CRIMES E PECADOS (Crimes and Misdemeanors), de 1989. Por sinal aparece em muitas listas de melhores de todos os tempos. Direção e roteiro de Woody Allen e fotografia de Sven Nykvist, profissional que trabalhava com Bergman.

O filme apresenta uma série de personagens antológicos. Um oftalmologista que teme o olho de Deus. Um rabino cuja fé inabalável o faz acreditar num sentido superior da vida e depois fica cego. Um documentarista (enxerga a realidade pelo olho da câmera) acreditando que valores fazem sentido. Um filósofo revelador das contradições da religião e da moral e, apesar disso, adota uma atitude positiva perante a vida, mas acaba se suicidando. Outros personagens são também interessantes: a amante enlouquecida, a irmã incapaz de ter um relacionamento, o irmão barra-pesada, a menina matando as aulas da tarde para assistir clássicos do cinema na companhia do tio, o produtor de TV com sucesso mas sem conteúdo, a garota que fantasiamos e depois fica com o cara idiota. Enfim, a gama de situações é extremamente rica.

Woody Allen é Cliff Stern, cineasta e documentarista. Orgulha-se de seu trabalho sério e está desenvolvendo um projeto pessoal: um documentário sobre o Prof. Levy, o filósofo idoso questionador da religião e da moral. No entanto, como precisa de dinheiro, visto ser considerado um “loser”, é obrigado a filmar um especial sobre a vida de seu cunhado, Alan Alda (Lester), um famoso produtor de TV, comercial, bem-sucedido e arrogante. Isso é um dilema para Cliff, ter que aceitar o jogo comercial. Além disso, mesmo casado, apaixona-se por Mia Farrow (Halley Reed), uma produtora também cortejada por Lester, fechando o vértice do triângulo amoroso (um triângulo desdobrado em várias pontas). Cliff não suporta Lester, tanto por este ter sucesso financeiro, como também considera o cunhado “vendido” para o sistema. Existe uma ingenuidade implícita no pensamento do cineasta: como ele se julga superior a Lester, um idiota no seu entender, e afinal é ele, Cliff, quem tem o projeto do documentário com o Prof. Levy, algo muito mais interessante que as bobagens do cunhado, acredita na preferência de Halley por sua pessoa. Acabará por descobrir que a vida não segue um sistema de valores e pode não ter sentido nenhum.

O Prof. Levy é outro achado. Aparece sempre pela imagem filmada pelo documentarista. "Na verdade, somos feitos da soma total das nossas escolhas.”

Na outra estória que segue em paralelo, Martin Landau é Judah Rosenthal, oftalmologista conceituado. Por trás da fachada de cidadão respeitável, mantém um caso com uma amante (Angelica Houston) e realizou algumas operações não muito éticas na contabilidade da empresa da qual é sócio. A amante está possessa, ameaça contar o caso para a esposa do médico e revelar as ilicitudes na empresa. A vida de Judah está prestes a desmoronar ("Consegui manter-me afastado do mundo real, mas de repente ele me encontrou”) e o médico precisa apelar ao irmão barra-pesada para resolver o problema. Fica dividido entre os conselhos sensatos do amigo rabino, Ben, ou a objetividade insensível do irmão, que acaba falando mais alto.

Apesar de outro viés, em "Crimes e Pecados" há ecos de "Crime e Castigo", de Dostoiévski, romance e autor preferidos de Woody Allen. (Na minha pequena lista de clássicos da literatura que li, também considero meus favoritos). O diretor nova-iorquino retomaria este tema, com brilhantismo, em 2005, com "Match Point".

Ao final, as duas estórias do filme se cruzam numa festa de casamento. Woody Allen está sozinho numa sala semiescura, cabisbaixo, um copo de whisky na mão, sentado ao lado de um piano parcialmente coberto pela penumbra da sala, pensando no desfecho do seu caso. "Isolado da festa? Como eu", pergunta Martin Landau, que chega com um cigarro na mão, procurando um local sossegado para relaxar, e senta-se ao lado de Woody Allen. "Ben me disse que você faz filmes", puxando assunto com o cineasta. "Tenho uma ótima estória de assassinato. Um grande roteiro. Mas minha estória tem um estranho desenlace." O médico passa a contar a experiência de um homem bem-sucedido, consumido pelo remorso de seu crime, alguém que teve uma educação religiosa muito rígida, e chega ao final da narrativa com o semblante pensativo, puxando as recordações, alinhando calmamente as palavras:

“Então, um dia, ele acorda...o sol está brilhando e sua família está ao seu redor. Misteriosamente, a crise desapareceu. Ele leva a família para a Europa, e descobre, com o tempo, que não foi castigado. Ao contrário, prospera. O crime é atribuído a outro, um vagabundo que já matou outras pessoas. Uma a mais não importa. Agora, ele está livre. Sua vida volta completamente ao normal, ao seu mundo seguro de riquezas e privilégios.”

“É, mas ele pode mesmo voltar ao que era?”, pergunta Woody Allen.

“Bem, as pessoas carregam seus pecados consigo”, responde Martin Landau. “Às vezes, o que fez o atormenta, mas passa. E com o tempo, tudo acaba. Isso é a realidade. Na realidade, racionalizamos. Nós negamos, senão, como continuar vivendo?

Woody Allen encerra sua fábula brilhante, engraçada, profunda e incômoda com os ensinamentos do Professor Levy:

“Tudo se dá de maneira tão imprevisível, tão injusta, que a felicidade humana não parece ter sido incluída no projeto da Criação. Somos nós, com nossa capacidade de amar, que atribuímos um sentido a um Universo indiferente. Assim mesmo, a maioria dos seres humanos parece ter a habilidade de continuar lutando e até de encontrar prazer nas coisas simples, como sua família, seu trabalho, e na esperança que as futuras gerações alcancem uma compreensão maior.”





sexta-feira, 9 de outubro de 2015

O PAGAMENTO FINAL

(“Um favor mata mais rápido que uma bala.”)




Certos atores estão associados a uma série de clássicos inesquecíveis. É o caso deste filme com Al Pacino. Dirigido por Brian De Palma. A parceria desses dois gênios do cinema americano, com a colaboração do produtor Martin Bregman, já havia rendido o excelente Scarface, em 1983. Dez anos depois, em 1993, o trio voltou a trabalhar junto e criou mais um grande filme de gângster, O PAGAMENTO FINAL (Carlito’s Way), um dos melhores clássicos do gênero. 

Este ótimo policial conta a luta inglória de um anti-herói contra o Sistema que não lhe permite chance de reabilitação.

Carlito Brigante (Al Pacino) é um porto-riquenho recém-saído da prisão, após cumprir cinco anos de sua pena por tráfico de drogas, atividade na qual era considerado um dos grandes chefões. Quer se regenerar. Não quer mais seguir a vida de crimes. Numa das cenas iniciais, comemorando sua liberdade com o amigo advogado David (Sean Penn, em grande atuação) e conversando na danceteria onde estão se divertindo, este lhe pergunta o que fará a seguir. O advogado não acredita no papo de regeneração, mas poderia lhe conseguir um emprego, gerente numa boate onde investiu seu dinheiro. Carlito não quer aceitar, quer vida nova, mas David insiste: "Você pode considerar como um favor entre amigos." Carlito precisa ser mais enfático:

"Nada de favores. Um favor mata mais rápido que uma bala."

Não queria mais ligações com as referências antigas. Noutra cena, em que sua paciência é posta à prova, reflete: "Os velhos instintos estão voltando. Mas não quero matar ninguém mesmo que ainda deva. Não sou mais assim."

A verdade é que Carlito não consegue se libertar de seu passado, mesmo que queira. Quando as coisas começam a se complicar novamente, aceita trabalhar no night club, na condição de sócio, para juntar dinheiro e mudar-se para as Bahamas com sua amada Gail (Penelope Ann Miller), onde um amigo lhe espera com uma parceria num negócio honesto. Mas não é possível para ele livrar-se do contexto de criminalidade que está a sua volta ("A rua está de olho. O tempo todo de olho."), como nativo de um bairro hispânico no Harlem, onde a luta pela sobrevivência passa ao largo das boas maneiras dos bairros abastados.

O talento do diretor Brian De Palma ajuda a contar a cruzada de Carlito em busca de redenção de uma maneira envolvente mas também sensível, graças em muito à atuação contida e humana de Al Pacino.

Nas cenas de suspense e ação, principalmente, onde o diretor imprime sua marca registrada, o virtuosismo de Brian De Palma confere brilho e energia à estória do determinado porto-riquenho. A ótima trilha sonora criando o clima de suspense, a câmera acompanhando a movimentação dos vários personagens, como peças de um jogo de xadrez coreografado, onde a plasticidade dos movimentos irromperá em cenas violentas. A perseguição na estação de trens, filmada num único movimento de câmera, seguida pela cena nas escadas rolantes são sequências espetaculares e um dos grandes momentos da história do cinema. De Palma repete sua técnica empolgante, puxando a lembrança da cena antológica da escadaria em Os Intocáveis.

Nas cenas sensíveis seu talento também se faz presente, como quando Carlito e Gail flertam entre a fresta de uma porta semiaberta, segura apenas por uma pequena corrente que não resistirá à sedução que passa dos closes nos semblantes para o reflexo do corpo seminu de Gail num espelho estratégico.

Os cenários e a fotografia também são pontos altos. O Pagamento Final é um grande filme policial do tipo que quase não se vê mais. Representa, sem dúvida, uma realização marcante do cinema americano.

É impossível não se comover com a sinceridade de Carlito e sua luta contra a realidade que o agride. Mas a sociedade é um jogo de cartas marcadas. Não há redenção possível para o ex-presidiário. A criminalidade lhe persegue por todos os lados. Está instituída pelo próprio sistema de diferenciação de classes, pela distribuição de renda desigual e apelo da fortuna fácil pela via criminosa, atalho para as benesses reservadas para poucos. Nesse cenário não há esperança de migração dos guetos palcos de uma luta sem glória e sem futuro para o paraíso imaginário das Bahamas.

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

ADVOGADO DO DIABO

(“Vaidade é, com certeza, meu pecado predileto.”)

                                                                                                                                                                                                                                                     
                                                         


ADVOGADO DO DIABO (The Devil’s Advocate) é um exemplo bem-sucedido de filme que combina dois gêneros, advogado e terror, e se torna clássico tanto de um gênero quanto do outro.

Convenhamos, Devil já teve um intérprete melhor que Al Pacino? Robert De Niro em Coração Satânico é candidato, mas é Al Pacino que confronta Deus, a plateia, o american way of life, e vira o mundo de Keanu Reeves e o nosso de cabeça para baixo. Tudo isso com uma interpretação irônica, histriônica, irresistível, e verdadeiramente diabólica. Assim como pensamos em Moses como Charlton Heston, aquele-que-não-se-deve-dizer-o-nome é Al Pacino.

Tentação, soberba, ambição e referências bíblicas permeiam o filme do início ao fim. Como cenário Nova York, símbolo do pecado. "A morada dos demônios", como dizia a mãe de Keanu Reeves, devota religiosa, o contraponto à perversidade sedutora de John Milton (Al Pacino), presidente de uma megaempresa de advocacia que opera no mundo inteiro.

Cenas memoráveis. Kevin Lomax (Keanu Reeves) é um advogado iniciante que se gaba de nunca ter perdido um caso. Sua apresentação a John Milton, quando está sendo recrutado pela firma deste, é uma dessas cenas. Numa clara alusão à tentação de Cristo no deserto, quando o Diabo O leva a um monte muito alto, John Milton conduz Kevin ao terraço do seu arranha-céu. Lá de cima, Nova York se estende ao longo da vista, ameaçadora e fascinante, com suas torres de vidro gigantescas, como estacas marcando território, cravadas em solo impuro ostentando riqueza e poder. Milton parece dizer ao jovem advogado: "Tudo isto será teu se me seguires."

Entre tantas outras cenas que prendem nossa respiração e retiram nosso fôlego, há que se destacar também, sem dúvida, o gran finale, o duelo definitivo entre Milton e Lomax, na grande sala do presidente da empresa.

Esse relembra o egoísmo de Kevin em relação à esposa, a bela Charlize Theron: “Você estava mais envolvido com outra pessoa. Você mesmo”. “Amor-próprio, a droga mais natural.” E a grande piada cósmica, no seu entender: “Deus dá instintos ao homem. Ele lhe dá esse extraordinário dom, e o que faz depois? Ele cria regras contrárias. Olhe, mas não toque. Toque, mas não prove. Prove. Não engula.” 

"Estamos negociando?", pergunta Milton. "Always", é a vez de Lomax responder, praticamente sem saída. O cerco sobre Kevin parece se fechar de forma irreversível.

Mas ele luta bravamente com a única arma que possui: o livre-arbítrio! 
("Livre-arbítrio é uma merda!", retrucava Milton.)

Ao final, noutro momento desse grande filme, quando parece que nosso herói (que é Kevin, o humano vítima das tentações) vai se safar, eis que ressurge John Milton, repetindo para todos nós:

Vaidade é, com certeza, meu pecado predileto.






segunda-feira, 21 de setembro de 2015

FREUD, JUNG E O MÉTODO PERIGOSO

(“Por que negar o que você mais deseja?”)   

                                                     





Sou leigo, não sou um profissional da área, mas considero a Psicologia uma ciência fascinante.

Para aqueles que estão interessados numa introdução à matéria, recomendo a leitura de dois livros muito legais. Para profissionais e apenas curiosos. ENTENDENDO FREUD ("A razão não é uma coisa dada. É preciso lutar por ela.") e ENTENDENDO JUNG ("Não há nada que os neuróticos gostem mais que chafurdar nos infortúnios do passado e na autopiedade"). Fazem parte da coleção Entendendo - Um guia ilustrado, da Editora Leya. Várias personalidades e assuntos são apresentados numa linguagem que mistura histórias em quadrinhos e textos. O resultado, considerando esses dois livros que li, é irresistível. Esta jornada pela vida e obra desses dois gênios da psicanálise nos conduz por uma leitura prazerosa e enriquecedora, desvendando-nos um mundo de luzes e sombras que nós, leigos, desconhecemos. Um passeio intrigante pelos meandros e mistérios da mente humana.

Um filme que revela a relação ambígua entre Freud e Jung, admiração mútua e ao mesmo tempo antagonismo, é o excelente UM MÉTODO PERIGOSO (A Dangerous Method), de David Cronenberg. Apresenta também a personagem Sabina Spielrein, paciente de Jung, depois sua amante, e que veio a se tornar um dos grandes nomes da psicanálise do século XX. O psicanalista austríaco Otto Gross, um dos pioneiros da “liberação sexual”, é outro personagem, interpretado por Vincent Cassel. Como paciente de Jung, encaminhado por Freud, sua breve participação no filme é igualmente marcante.

Freud considerava Jung como seu sucessor legítimo, mas em certo momento da relação entre ambos as divergências passaram a se manifestar.

"Temos de entrar em território desconhecido", pensava Jung.

"O mundo está cheio de inimigos à procura de um modo para nos difamar. E assim que nos virem abandonar a terra firme da teoria sexual eles atacarão, deleitando-se na lama negra da superstição", retrucava Freud.

Sabina Spielrein também metia sua colher: "Talvez tenha chegado ao estágio onde obediência importa mais para ele que originalidade", referindo-se a Freud.

A relação apaixonada e tempestuosa entre Sabina, Jung e Freud atravessa a tela com intensidade e discute a complexidade dos relacionamentos humanos e a própria essência da psicanálise, sua evolução, tratamentos, teorias, dogmas e contradições. Um filme para ser admirado e discutido.

O legado dessas personalidades da psicanálise é fenomenal. Pois a verdade é que podemos ser os piores inimigos de nós mesmos. Somos capazes de nos autoboicotar e autodestruir. E essa luta contra nosso próprio indivíduo pode ser desigual. Cruel e desumana. Levamos desvantagem. Não temos condições de vencê-la sozinhos. Precisamos do reforço da cavalaria. É aí que entram nossos heróis. Jung, Freud, seus seguidores e outras correntes.

A Psicanálise é a ferramenta para restabelecermos o equilíbrio perdido na estrada sinuosa da vida.

Afinal, como dizia Jung, "Às vezes você tem de fazer algo imperdoável apenas para ser capaz de continuar vivendo".










sábado, 29 de agosto de 2015

O HOMEM QUE MATOU O FACÍNORA

(“Imprima-se a lenda.”)





Quem não tem um amigo ou parente advogado? Pois é, a turma do Direito é presença constante em nossas vidas pessoais ou profissionais. No meu caso, sou casado com uma advogada, tenho vários amigos e parentes advogados, e no meu local de trabalho a maioria dos colegas são advogados. Eu mesmo estudei dois anos de Direito na UFRGS. Não gostava da linguagem empolada do Curso e troquei de faculdade. Mas reconheço a nobreza das Ciências Jurídicas e Sociais. Mais do que defensores de direitos e leis, os advogados podem ser considerados, em seu conceito mais elevado, como a imagem idealizada de guardiões da Justiça. Embora, muitas vezes, a realidade confronte essa imagem, o que importa é o espírito nobre dessa secular profissão. Em homenagem aos meus amigos do Direito, resolvi escrever sobre um filme que muito admiro.

Os filmes de advogados são um gênero tradicional do cinema americano. Grandes filmes como Advogado do Diabo, Testemunha de Acusação, Doze Homens e Uma Sentença, O Sol É Para Todos, etc. E talvez o melhor do gênero, uma das mais importantes produções americanas, O HOMEM QUE MATOU O FACÍNORA (The Man Who Shot Liberty Valance). Western de 1962, de John Ford, mestre deste gênero, com James Stewart, John Wayne, Vera Miles, Lee Marvin e Edmond O’Brien.

Também um filme sobre o nobre papel da Imprensa. Uma fita que faz a apologia de dois pilares da democracia: o Direito, como defensor da lei e da ordem, e a Liberdade de Imprensa. Mas este filme extraordinário, que contempla dois gêneros máximos do cinema americano, advogado e western, ainda é mais do que isso.

James Stewart  é Ransom Stoddard, um jovem idealista recém-formado em Direito, que chegou a uma pequena cidade do Velho Oeste ("Vá para o Oeste, rapaz. Atrás de fama, fortuna e aventura", citação que relembra anos depois), disposto a trabalhar com seu ofício numa localidade que desconhecia esse traço civilizatório. Um forasteiro que ao invés de arma carregava livros. O contraste entre o novo e o velho, a civilização e progresso que vem do Leste e o conservadorismo do Oeste primitivo, é um tema recorrente nos westerns.

O filme é narrado em flashback, com o advogado, agora um político respeitável, que retorna muitos anos depois, com sua esposa, Vera Miles, à pequena Shinbone, já adaptada aos novos tempos, por conta do falecimento de um amigo. A morte desse amigo representa o final de uma era. Stoddard conta sua própria história para um jornalista local que deseja saber a verdade sobre o mito que se criou em torno de seu nome. Antes, ao chegarem na estação ferroviária, foram recebidos por um velho amigo, o antigo xerife. Hallie (Vera Miles) comentou: "Esse lugar mudou mesmo." O ex-xerife respondeu: "Foi a estrada de ferro. O deserto continua o mesmo." Antes da estrada de ferro se desenvolve a história narrada.

Naquela época, Ransom Stoddard precisava trabalhar como lavador de pratos no saloon local, onde se apaixonara por Hallie. Seu amigo e aliado, o jornalista Dutton Peabody, permitira que ele colocasse, na fachada do seu jornal, uma placa oferecendo seus serviços de attorney at law. Também era professor. "A educação é a base da lei e da ordem", estava escrito no seu quadro-negro. Encontraria muitas dificuldades para pôr em prática seu projeto, o respeito às leis. A cruzada de Stoddard, seu ideal e maneiras civilizadas contra a crueza da luta simples pela sobrevivência é o mote principal do filme.

John Wayne é uma atração à parte. Sempre interpretando a si mesmo, ele é Tom Doniphon, cowboy que encarna as virtudes dos homens do Velho Oeste.  É o contraponto de Stewart, sempre advertindo sobre a natureza hostil da região. Representa os homens rudes que contrastam com o almofadinha Ransom. Ambos disputam a preferência romântica de Vera Miles. Impossível não se impressionar com o carisma do velho John Wayne e sua persona heroica e conflitada do cowboy que breve irá desaparecer.

O western é tradicionalmente um cinema político, o que valoriza ainda mais esse gênero icônico. Muitas vezes os vilões são grandes fazendeiros, detentores do poder econômico, que oprimem a população humilde. Lee Marvin é Liberty Valance, o próprio facínora do título, a arma empunhada pelos latifundiários para defender seus privilégios. E inimigo do idealista James Stewart.

Outro grande ator do filme é Edmond O’Brien, que representa o jornalista pioneiro, proprietário do Shinbone Star, Dutton Peabody, que com seu pequeno jornal, em nome da liberdade de imprensa, afronta os poderosos da região, naqueles tempos anteriores à estrada de ferro. Ao contrário dos nossos jornais de hoje, que só publicam notícias de acordo com seus interesses políticos, para Peabody tudo que fosse importante era notícia. Em uma das melhores cenas do filme, a eleição de dois representantes da comunidade, Ransom  indica Peabody. Este retruca, atônito, como se não acreditasse no que estava acontecendo: "Sou um jornalista, não um político! Eu faço os políticos! Eu os ponho lá em cima e depois os destruo!"

O Homem Que Matou o Facínora é também uma fita sobre a ironia amarga da vida. Alguns colhem os louros e fama pelos méritos de outros, que permanecerão desconhecidos. Como se o progresso e evolução se escorassem em heróis anônimos, condenados para sempre ao obscurantismo. Um carma carregado pela civilização. Numa das cenas finais, o editor do jornal que conduz a entrevista, após o término da narrativa do agora respeitado senador Ransom Stoddard, rasga as folhas que contêm a versão real da história e responde à pergunta do próprio se não irá publicá-la:

"Não, senhor. Estamos no Oeste. Quando a lenda se torna fato, imprima-se a lenda."

Western que gostamos cada vez mais à medida que revemos, O Homem Que Matou o Facínora é um dos maiores clássicos de todos os tempos.

E aproveito para citar as palavras do editor, reportando-me novamente ao belo ofício dos amigos advogados: Imprima-se a lenda!

domingo, 23 de agosto de 2015

AKIRA KUROSAWA

(“Você vai se deixar destruir ou vai transformar o infortúnio em triunfo?")





Algum tempo atrás adquiri uma peça valiosa para minha coleção de DVDs. Sim, eu coleciono DVDs e Blu-rays originais. São minhas mídias preferidas. Os serviços de streaming considero muito limitados. Downloads não são minha praia, muito menos pirataria. É um sentimento um pouco vintage (é irresistível o charme de certas coisas antigas), um pouco ético (no caso da pirataria, não pretendo financiar o crime organizado e respeito os comerciantes que lutam para pagar os impostos), mas sobretudo prezo pela qualidade do material, pela identificação afetiva com o formato e pelo deleite do programa. Algo semelhante a preferir livros impressos em papel. DVDs e Blu-rays são as mídias por excelência para o home theater, que valorizam o prazer de assistir em casa a um bom filme, seriado ou musical. Se são incorporados à minha coleção particular, o prazer é redobrado. Sigo essa teoria com um fervor quase religioso, quase fanático. Quem é colecionador, seja lá do que for, compreende...

Gosto de garimpar ofertas de bons títulos, mas às vezes o investimento é inevitável. Foi o caso desta compra. A peça que consegui é uma caixa com cinco filmes do mestre japonês AKIRA KUROSAWA, lançada pela Europa Filmes, na época esgotada no mercado, mas agora, felizmente, relançada pela mesma distribuidora. Comprei pelo Mercado Livre, de um vendedor do interior de São Paulo que resolvera se desfazer do artigo de sua coleção particular (evidentemente que por um preço maior de mercado, visto que na época era uma raridade). 

Faço a sugestão para quem gosta de clássicos. Os cinco filmes contemplados são obras de arte indiscutíveis.

CÉU E INFERNO, filme de 1963, com Toshiro Mifune, é um excelente drama de suspense, superior à maioria dos similares hollywoodianos. Considero um dos melhores filmes desse gênero que já assisti. Ao se deparar com um caso de sequestro, um empresário honesto e idealista confronta-se com um dilema ético potencializado pela estratificação social inerente às sociedades capitalistas. As duas pontas da relação capital e trabalho relacionam-se de forma ambígua e despudorada num filme emocionante e envolvente. Destaque também para a metódica investigação da polícia.

CÃO DANADO (1949) é outro interessante drama policial. É considerado a primeira obra-prima de Kurosawa. O lendário ator Toshiro Mifune interpreta um policial que teve sua arma roubada. Sentindo-se humilhado, ele empreende uma busca obstinada para recuperá-la, através do submundo de sua cidade. Ao descobrir que a arma veio a ser utilizada num crime, naturalmente sente-se responsável. É quando o Chefe de Polícia lhe diz: "Um infortúnio pode destruir ou fortalecer uma pessoa. Você vai se deixar destruir? Pode-se transformar o azar em sorte." Toshiro Mifune prossegue com seu calvário em busca de redenção, lembrando-se do comentário feito por seu parceiro, Sr. Sato, a respeito do criminoso procurado: "Cão danado só enxerga numa única direção."

Os demais são filmes de samurais.

SANJURO é um filme de aventura divertido e inteligente, de 1962. Continuação de Yojimbo, outro grande clássico do mestre japonês. O personagem Sanjuro é um ronin, samurai sem mestre, irreverente e debochado. Hábil com a espada e com as palavras ("Uma espada de um amigo estúpido é mais mortal que a de um inimigo"). Sanjuro, interpretado também por Toshiro Mifune, ator preferido de Kurosawa, se junta a um inexperiente grupo de jovens idealistas que querem combater a corrupção em seu povoado. Note-se a atualidade do tema. Akira Kurosawa combina ação, planos ardilosos e comédia (as cenas em que o prisioneiro entra e sai do armário interagindo com seus captores são hilárias), compondo um filme irresistível que se assiste com um prazer juvenil. Diversão garantida no nosso home cinema

DEPOIS DA CHUVA é um filme póstumo, o único da coleção não dirigido por Kurosawa. Explico melhor: baseado no último roteiro escrito pelo diretor, mas não filmado, foi lançado em 1999, após sua morte, e dirigido por Takashi Koizumi, discípulo do mestre japonês, a quem auxiliara neste mesmo roteiro. Portanto, é um autêntico Kurosawa. Um belo filme sobre um ronin à procura de emprego. Gentil e sorridente, Ihei Musawa paga um alto preço por querer ajudar os pobres e necessitados. Viaja acompanhado por sua esposa, uma doce criatura, mas enérgica quando necessário, que o compreende e apoia nas dificuldades. "Você é incapaz de pisar nos outros para tomar o lugar deles. Acho você maravilhoso", reflete ela sobre o marido. Takashi Koizumi honra Akira Kurosawa, dirigindo o filme pela perspectiva do mestre e dando vida a um dos mais belos poemas sobre o Japão medieval.

Por fim, no último item da coleção Kurosawa, um dos maiores épicos de todos os tempos, OS SETE SAMURAIS, de 1954. Pode ser colocado, na história do cinema, lado a lado com Ben-Hur, Reds ou Lawrence da Arábia. É um dos filmes responsáveis pela abertura do Ocidente ao cinema japonês e teve adaptações hollywoodianas lendárias, como Sete Homens e Um Destino e Vida de Inseto, da Pixar.

O filme conta a estória de um vilarejo de lavradores, que atemorizados com os ataques constantes de bandidos, resolve contratar samurais para protegê-los, treiná-los e liderá-los para um enfrentamento contra o bando de quarenta malfeitores que voltará para saqueá-los, após a colheita da cevada. Como são pobres e não têm dinheiro para pagá-los, precisam encontrar sete samurais famintos, que aceitem trabalhar por comida, conforme colocou o ancião líder do vilarejo. Um grupo parte da aldeia com essa missão. Uma tarefa praticamente impossível que vai tomando forma à medida que o drama dos lavradores vai comovendo tanto aqueles que passam a acompanhar o processo, quanto os próprios samurais que vão sendo recrutados sob o pretexto de comida e diversão. O primeiro samurai contratado, que se torna o líder do bando, Kambei (Takashi Shimura), fala para um amigo antigo, no processo de recrutamento: "Estamos nos preparando para uma guerra. Sem glória e sem dinheiro. Talvez a gente morra." O outro samurai apenas sorri, como se a ironia do argumento fosse o suficiente para aceitar a missão. Uma série de dramas pessoais e coletivos vão-se entrelaçando à medida que o embate com os bandidos se aproxima e se desenvolve, inundando a tela com emoções contraditórias, carregadas de adrenalina, que explodem num filme eletrizante, emocionante e comovente. Exagerar nos adjetivos é pouco para expressar a grandeza desse épico. Não foi de graça o enorme sucesso internacional que o filme alcançou em sua época.

Um dos aspectos interessantes do filme, entre tantos apresentados, é o arquétipo do Velho Sábio. Essa é uma das imagens que o psicanalista C. G. Jung utilizava para exemplificar sua teoria do Inconsciente Coletivo. Uma das formas em que a humanidade se imagina em comunhão com um "Espírito Sábio". A figura do Velho Sábio é recorrente em vários mitos e lendas, em todas as eras e culturas. No filme, é representada pelo ancião que planejou a contratação dos samurais e cuja sabedoria é respeitada pela aldeia. Em determinada cena, quando o povo se esconde com medo dos guerreiros contratados que chegam à sua vila, o velho explica para os samurais: "Meu povo é muito tolo. Sempre se preocupam com alguma coisa. Chuva, sol, vento. Eles se acordam preocupados e vão dormir preocupados. Mas hoje é diferente. Só estão preocupados. Sem nenhum motivo, só isso."

Outra sacada legal do filme é o personagem de Toshiro Mifune, o samurai Kikuchiyo. Espalhafatoso, fanfarrão, dinâmico, e às vezes atrapalhado, é responsável por momentos cômicos e outros sérios. Carismático, entre tantas figuras carismáticas que o elenco apresenta. Em certo momento, abandona seu posto de vigilância e entra no acampamento dos bandidos como se fosse um deles. Consegue roubar uma das armas de fogo, um dos trunfos dos agressores. Ao voltar para a aldeia sitiada recebe uma reprimenda de Kambei, por ter deixado seu posto: "Não há honra nisso. Escute. Você não pode lutar uma guerra sozinho!" 

A cumplicidade e solidariedade contraditórias entre personas tão diferentes entre si, como samurais e lavradores, que precisam lutar juntos, é um dos aspectos que confere tanta emoção a essa obra-prima. Ao final, o líder samurai encerra a epopeia com a constatação da própria fragilidade de sua classe: "E, mais uma vez, fomos derrotados. Os vencedores são os lavradores; não nós."

Enfim, há muita riqueza a ser descoberta sobre o cinema japonês e Akira Kurosawa. Fica a sugestão do box, uma amostra de um cinema lendário cuja sensibilidade e cultura engrandecem nossa alma.